O que é a Escolha Pública? Para uma Análise Económica da Política, por José Manuel Moreira e André Azevedo Alves

[Índice e texto retirado da Introdução ao livro de José Manuel Moreira e André Azevedo Alves, O que é a Escolha Pública? Para uma Análise Económica da Política, Cascais: Principia, 2004.]

Introdução

A questão das designadas «falhas de mercado» constitui um dos temas que mais atenção tem merecido por parte de economistas, professores, políticos e cidadãos em geral. A abordagem dessa matéria começa geralmente pela identificação de alegadas «falhas de mercado», motivadas pelas mais diversas «imperfeições» que, por sua vez, requerem a intervenção do Estado no sentido de as corrigir, contribuindo assim, supostamente, para a promoção do bem-estar social e da eficiência económica. Uma vez identificada uma «falha» no funcionamento do mercado livre, assume-se, de forma geralmente implícita, que o Governo, naturalmente dotado de boas intenções, tem ao seu dispor os meios, os conhecimentos e as capacidades necessárias para, intervindo na economia, estabelecer uma situação socialmente mais vantajosa. Está inclusivamente muito difundida na opinião pública a ideia de que, perante a percepção de um qualquer problema, se justifica (e por isso exige) a intervenção estatal.

No entanto, ao longo das últimas décadas, esta concepção do Estado como «corrector» das falhas de mercado tem vindo a ser crescentemente questionada. A análise dos pressupostos justificativos da intervenção governamental na economia e o estudo da forma como essa intervenção tende a desenvolver-se na prática têm feito crescer o número daqueles que olham com cepticismo as «miraculosas» soluções estatais. Daí a busca de alternativas que permitam – simultaneamente – evitar intervenções de consequências nefastas e promover o eficiente desempenho das funções fundamentais do Estado.

Estes estudos, que no fundo visam conseguir uma análise realista e teoricamente consistente do processo político, da acção colectiva e das práticas governativas, deram origem, no âmbito da Economia e da Ciência Política, a uma nova abordagem: a «teoria da escolha pública» (public choice, na terminologia anglo-saxónica), que consiste, grosso modo, na aplicação da análise económica à política.

A decisão, em 1986, por parte da Real Academia Sueca das Ciências, de atribuir o Prémio Nobel da Economia a James McGill Buchanan, pelo desenvolvimento das bases contratuais e constitucionais para a tomada de decisões económicas e políticas, veio atrair ainda mais atenção para a inovadora abordagem da escolha pública. Buchanan que, com Gordon Tullock, produziu The Calculus of Consent, muito provavelmente, a obra seminal neste importante desenvolvimento da Economia e da Ciência Política. Lançando as bases de uma nova abordagem dos estudos constitucionais, a qual seria amplamente desenvolvida nas décadas seguintes, Buchanan e Tullock acabaram por dar origem à teoria da escolha pública, com a sua provocatória denúncia da crescente politização da economia e a formulação de uma dura crítica à visão romântica do Estado benevolente e eficaz.

No presente livro, propomo-nos apresentar de forma sintética, mas sem perda de rigor, as características essenciais desta importante e inovadora abordagem que é a teoria da escolha pública. O objectivo desta obra é, assim, servir de introdução – a estudantes e ao público em geral – à teoria da escolha pública, sendo que procuramos simultaneamente fornecer referências bibliográficas, naturalmente não exaustivas, que permitam aos interessados aprofundar os seus conhecimentos nas várias matérias apresentadas ao longo do livro.

No segundo capítulo faremos uma sucinta apresentação das origens da teoria da escolha pública, começando por analisar o contexto em que surgiu este novo programa de pesquisa e daí partindo, retrospectivamente, em busca dos seus principais antecedentes teóricos, com destaque para as contribuições do grande economista sueco Knut Wicksell e para os problemas levantados por Arrow e Black relativamente ao processo de decisão democrático. No terceiro capítulo, abordaremos de forma mais desenvolvida os aspectos fundamentais da teoria da escolha pública, partindo precisamente dos contributos fundamentais que foram introduzidos por Buchanan e Tullock na sua obra The Calculus of Consent. Analisaremos a nova abordagem constitucional introduzida pela teoria da escolha pública, assim como a enriquecedora perspectiva lançada pela mesma sobre os processos de decisão colectiva.

Ainda no terceiro capítulo, apresentaremos os ensinamentos da teoria da escolha pública sobre as condições necessárias ao bom funcionamento de um sistema baseado no governo democrático da maioria e analisaremos de forma sintética alguns dos mais importantes subprogramas de investigação que mais se têm destacado nesta abordagem ao longo dos últimos anos. No quarto capítulo, abordaremos algumas questões éticas relacionadas com a teoria da escolha pública. No quinto capítulo, procuraremos dar uma ideia das múltiplas aplicações da teoria da escolha pública às mais variadas áreas políticas, económicas e sociais através da análise de alguns problemas específicos. No sexto capítulo, procederemos à análise e apreciação de algumas das principais objecções formuladas à teoria da escolha pública. Apresentaremos também um balanço do impacto que a teoria da escolha pública tem vindo a ter na comunidade científica e na opinião pública. Terminaremos com uma reflexão sobre os contributos que esta inovadora abordagem fornece para combater a crise dos sistemas democráticos através do desenvolvimento de boas práticas de governo e administração e da promoção de um saudável equilíbrio entre sociedade civil e Estado.

Índice

Prefácio 
1. Introdução
1.1. O papel da teoria da escolha pública
1.2. A escolha pública como programa de pesquisa
2. Origens da Teoria da Escolha Pública
2.1. Os precursores da public choice
2.2. Finanças públicas e economia política
2.3. Escolha pública e preferências individuais
2.4. Análise económica da democracia
2.5. Problemas das votações por maioria
3. A Teoria da Escolha Pública
3.1. Política e economia
3.2. O individualismo metodológico no contexto das escolhas colectivas
3.3. Externalidades, bens públicos e Estado
3.4. Imperfeições e falhas do Governo
3.5. A lógica da acção colectiva e a dimensão dos grupos
3.6. A teoria dos clubes
3.7. Maiorias simples e o paradoxo do voto
3.8. Teoria económica das Constituições
3.9. Logrolling e grupos de pressão
3.10. Rent-seeking 
4. Ética, Democracia e Eficiência
4.1. A ética das escolhas individuais e a sociedade civil
4.2. Ética, mercado e política
4.3. A ética do trabalho e da poupança
4.4. Ética e organização social
5. Aplicações da Teoria da Escolha Pública
5.1. Escolha pública e interdisciplinaridade
5.2. Despesa pública e arbitrariedade fiscal
5.3. Segurança social
5.4. Descentralização e poder local
5.5. Teoria das burocracias e reforma da Administração Pública
5.6. Educação e liberdade de escolha
6. Considerações Finais
6.1. Objecções à teoria da escolha pública .
6.2. O impacto da teoria da escolha pública
6.3. A crise da democracia e a teoria da escolha pública
7. Apêndice
Elogio do doutorando J. M. Buchanan (Texto lido na cerimónia de Doutoramento Honoris Causa de James McGill Buchanan pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto, em 1995)
Entrevista com James Buchanan, Nobel da Economia 1986

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Estado Corporativo

Sou licenciado em Economia. Tenho dois mestrados e um doutoramento em Economia. Sou professor de Economia numa universidade pública. Sou membro da Associação Económica Europeia. Tenho artigos publicados em revistas científicas internacionais de Economia. Com todas estas qualificações, o Estado português não me reconhece como economista. Porquê? Porque não estou inscrito na Ordem dos Economistas.

Quais as consequências de não estar inscrito na Ordem? De acordo com artigo 4º dos seus Estatutos, não posso fazer “análises, estudos, relatórios, pareceres, peritagens, auditorias, planos, previsões, certificações e outros actos, decisórios ou não, relativos a assuntos específicos na área da ciência económica”. Resta-me, sempre que quiser elaborar um destes estudos, pedir a um meu aluno que assine por mim.

A Ordem dos Economistas não é um exemplo isolado. A pouco e pouco, Portugal tem-se tornado num estado corporativo. Advogados, arquitectos, biólogos, enfermeiros e muitos outros organizam-se em torno de corporações profissionais. Há ainda Pró-Ordens para psicólogos e professores.

Por que existem estas corporações profissionais? Tipicamente, argumenta-se que determinadas actividades são muito exigentes e especializadas e que os prejuízos que maus profissionais causariam à sociedade seriam tremendos. De seguida, diz-se que os profissionais no activo estão em melhores condições para definir os requisitos da sua profissão.

Esperar-se-ia que as Ordens Profissionais e outras corporações dessem formação adequada sobre o exercício da profissão e que procedessem a um controlo de qualidade, punindo infracções a códigos deontológicos. É isto que observamos? Claramente, não. Há uns anos, por exemplo, não houve qualquer condenação aos médicos que passaram centenas de atestados a alunos de Guimarães para faltarem aos exames. Há uns dias, a Inspecção-Geral de Saúde concluiu que a um número alarmante de baixas médicas nem sequer correspondia um único registo clínico do “doente”. De ambas as vezes, a reacção da Ordem dos Médicos foi dizer que os médicos não são polícias. Se nem com estes escândalos mediáticos as Ordens actuam, o que esperar no dia-a-dia? Na verdade, em vez de garantirem as melhores práticas, as Ordens protegem, de uma forma autista, os seus associados.

A única acção visível da Ordem dos Médicos tem sido a de limitar o número de médicos. Desde que existe, tem-se esforçado por impedir a abertura de novos cursos de medicina e o aumento do número de vagas nos cursos já existentes. Quase sempre com sucesso. Os farmacêuticos têm conseguido impedir a abertura de novas farmácias. Mesmo a ténue e meritória liberalização ensaiada pelo governo Sócrates serve os interesses das farmácias instaladas. A Ordem dos Notários quer o monopólio da autenticação de documentos. A Ordem dos Arquitectos recusou-se a reconhecer o curso de Arquitectura da Universidade Fernando Pessoa. A Ordem dos Revisores Oficiais de Contas exige uma licenciatura adequada e obriga os candidatos a sujeitarem-se a quatro exames escritos e um oral. Cada exame custa 300 euros. Antes dos exames os candidatos são aconselhados a frequentar um curso de preparação com quatro módulos, que decorre ao longo de um ano. O custo de cada módulo é de 1650 euros. A pequena minoria que passa nos exames tem ainda de fazer um estágio de três anos com remunerações baixíssimas.

As estratégias variam, mas o objectivo é o mesmo: criar barreiras hercúleas que impeçam o acesso à profissão. É este o papel das Ordens. Restringir a oferta e a concorrência. Os efeitos de tamanhos obstáculos são óbvios. Já em 1776, Adam Smith escrevia que “os privilégios exclusivos das corporações, os estatutos de aprendizagem, e todas as leis que, em empregos determinados, restringem a concorrência (…) tendem a sustentar salários e lucros a um nível superior à sua taxa natural. Tais sobrevalorizações podem durar tanto quanto as regulamentações que lhe deram origem”.

Não vale a pena ter ilusões. As Ordens, e outras corporações profissionais, servem para garantir remunerações anormalmente elevadas aos seus associados, perpetuando os seus privilégios, prejudicando e subjugando o interesse público a interesses privados.

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O Brasil no Caminho da Servidão

Um ensaio jurídico, econômico e filosófico sobre a realidade brasileira contemporânea, compreendida à luz dos ensinamentos deixados por F. A. Hayek em 

O CAMINHO DA SERVIDÃO

1) Introdução

O capitalismo monopolista de estado é a preparação material mais completa para o socialismo, sua ante-sala, um degrau na escada histórica entre o qual e o degrau chamado socialismo não há nenhum degrau intermediário (Lênin[1])

         Se Hayek fosse vivo e estivesse em visita ao Brasil, onde poderia constatar in loco a estrutura e o funcionamento do nosso “Estado Burocrático de Direito”, certamente diria que o caminho da servidão descrito em pormenores por ele em célebre obra homônima já foi em grande parte percorrido por esta nau que hodiernamente leva consigo cento e setenta milhões de pessoas, rumo a uma sociedade cujas características revelam-se cada vez mais contrárias àquelas enunciadas historicamente nos discursos dos burocratas tupiniquins.

Sob o argumento da premência de se fazer “justiça social”[2], estes donos do poder têm tomado medidas de cunho socializante, motivados pela vã ilusão de que é possível redistribuir renda por meio da intervenção estatal com eficiência, atribuindo ao Estado, por conseguinte, um sem número de funções, criando uma burocracia monstruosa que só se sustenta com uma carga tributária acachapante. Amarram a economia regulando-a a não mais poder, imbuídos da crença irrefletida de que o livre mercado é quem concentra a renda da população, e não precisamente as medidas tomadas no sentido de amordaçar a mão invisível smithiana.

         Não parece haver dúvidas também de que Hayek, nessa sua estada imaginária em terras que têm palmeiras e cantam sabiás, se sentiria um pouco confuso se se lançasse a tipificar as nuances que delineiam e formatam o Estado brasileiro, as quais lhe imprimem o seu modus operandi. Afinal, notaria que não obstante receba os epítetos constitucionais de “democrático” e “de Direito”, pouco se assemelha à conceituação que o mestre austríaco formulou de Estado de Direito, aquele em que “todas as ações governamentais são regidas por normas previamente estabelecidas e divulgadas”[3].

Isso porque muito embora se possa dizer, por um lado, que o Brasil é um país democrático regido por leis previamente estipuladas, grande parte da legislação pátria não se circunscreve a impor apenas – e de antemão – princípios gerais: o alcance das leis brasileiras é tão mais abrangente quanto penetrante, na medida em que concedem às autoridades estatais “poder efetivo para agir da maneira que lhes parecer conveniente”[4]. Com elas, o Estado, através da pena do legislador, se imiscui nas relações entre os entes privados, abandonando assim a função que justifica a sua existência mesma, consistente na edição restrita de normas que se aplicam a situações universais. O resultado não haveria de ser outro senão o lento, gradual e quase imperceptível arrefecimento da liberdade dos agentes individuais, culminando num estágio sócio-patológico em que a lei não mais cumpre a missão, que lhe é ínsita nas sociedades abertas e livres, de salvaguardar a estabilidade institucional e as liberdades fundamentais, transmutando-se ela própria na maior transgressora dos direitos individuais.

         O panorama descrito é uma fotografia fiel da atual situação política e econômica do Brasil. Enfrentá-lo com honestidade é empreitada de grande monta. A conhecida fábula do sapo que morre feliz quando cozido em fogo brando e salta da mesma panela repleta de água fervendo sugere uma analogia macabra com as medidas governamentais de iniciativa dos estadistas brasileiros, sobretudo os que receberam dos votantes procuração para atuar à frente da nação nos últimos mandatos.

 Poucos acreditarão que um Estado democrático de Direito investirá contra as liberdades individuais dos súditos. Tal como o pobre sapo que não se revolta e até se conforta com o vagaroso processo que ocasionará a sua morte, é possível que os cidadãos de um determinado país não ofereçam resistência às ingerências governamentais nas relações entre os indivíduos, ainda mais quando a intervenção estatal é imposta calculadamente e em doses homeopáticas, acompanhada de um aparato de propaganda que inculque na população que ela é tanto benéfica quanto imprescindível.

A lei é, aí, o instrumento ideal a auxiliá-los no controle da economia, o qual acarreta, porém, o fracasso dos objetivos finais que os induzem a controlá-la. Os resultados são invariavelmente inversos aos pretendidos: insatisfação comum, ao invés do bem comum; exacerbação da concentração da renda, ao invés da redistribuição da mesma, pela via estatal, à população mais necessitada; ameaça à democracia e ao Estado de Direito, visto que o controle da economia dá ensejo à concentração de poderes e ao surgimento de déspotas. Esta última mas não menos nefasta conseqüência do planejamento econômico é explicada por Hayek com o argumento inabalável segundo o qual “para ser submetida a um controle consciente, o complexo sistema de atividades inter-relacionadas que constitui uma economia terá de ser dirigido por uma única equipe de especialistas, devendo a responsabilidade e o poder últimos ficar a cargo de um chefe supremo, cujos atos não poderão ser tolhidos pelos processos democráticos”[5].

A utilização da lei para, sob o manto da democracia, arrebatar as liberdades individuais; a profusão difusa e premeditada de um aparato de propaganda para justificar, com retórica enganosa, o arrefecimento dessas liberdades; o sacrifício da liberdade por parte da população em busca de segurança e a intensa intervenção do Estado na economia, que se dá em concomitância com a hipertrofia do aparelho estatal são expedientes que foram dissecados por Hayek em “O Caminho da Servidão” e que, mais do que todos os outros enumerados por ele, apresentam-se de forma marcante no Brasil contemporâneo.  

2) O uso da lei como instrumento de destruição do próprio Estado de Direito e o sacrifício da liberdade em busca de segurança

         Uma sociedade em que as leis editadas pelo Estado são conhecidas previamente pelos cidadãos difere sobremaneira daquela em que os súditos são apanhados de surpresa pela edição de normas capazes de interferir com mão pesada na rotina de suas atividades. Sem embargos, pode-se dizer que no primeiro caso tem-se um Estado institucionalmente estruturado, regido pelo que Hayek denominou normas formais, destinadas “apenas a servir de meio a ser empregado pelos indivíduos na consecução dos seus objetivos”[6]Além de lhes serem postas de antemão, elas não interferem diretamente nas suas ações particulares, cabendo-lhes direcioná-las em acordo com suas convicções, posto que o poder de coerção das autoridades estatais está aí reduzido ao seu mínimo necessário.

         O Brasil, definitivamente, encontra-se no segundo caso. A quantidade de leis, decretos e atos normativos que se publicaram em desrespeito aos princípios básicos de um Estado de Direito são inúmeros, e autorizam a classificar os recentes governos brasileiros como arbitrários, nada obstante a imprensa e a nossa classe de intelectuais, em sua maioria esquerdistas, entretenham-se celebrando o recente “espetáculo democrático” consubstanciado com a última alternância do mandato presidencial. Exaltando a democracia como um fim em si mesmo e elevando-a ao degrau máximo da infalibilidade[7], ignoram e contaminam a população com sua ignorância em relação ao fato comprovado pelo testemunho histórico de que mesmo um governo democraticamente eleito é capaz de perpetrar incursões descaradas contra a segurança jurídica, a propriedade e a liberdade dos cidadãos, e, o que é pior, de fazê-lo em nome do “bem comum” e do “Estado democrático de Direito”. Vejamos alguns casos paradigmáticos que convalidam essas assertivas.

          Um dos exemplos mais representativos de atentado contra a segurança jurídica no Brasil é a compulsão frenética que o Poder Executivo tem por legislar através das famosas Medidas Provisórias (MPs), que encontram previsão no art. 62 da Constituição da República Federativa do Brasil em vigor. O texto desse artigo diz que as MPs possuem “força de lei”, e que o Presidente da República poderá lançar mão delas em situações de “urgência” e “relevância”, quando se justificaria o atropelo do trâmite habitual a que se deve submeter a aprovação de uma lei no Congresso Nacional.

Os dados estatísticos dos governos democráticos brasileiros da era pós “Diretas já” que traçam um panorama do uso das MPs são estarrecedores, e mostram que esse mecanismo legislativo tornou-se a menina dos olhos do Poder Executivo. Os requisitos do art. 62 da Constituição Federal costumam ser respeitados em ocasiões de excepcional raridade e sensatez, razão pela qual a quantidade de Medidas Provisórias publicadas desde a criação desse instituto até os dias de hoje é assombrosa[8].

A sofistica hábil e escorregadia dos políticos não tarda em justificar tamanho atentado contra a estabilidade jurídica em prol da “governabilidade”. Ressalte-se que o problema não está no instituto em si, visto que instrumentos legais análogos existem em diversos países desenvolvidos, com o diferencial de que em nenhum deles se tem noticia do seu uso abusivo. No Brasil, porém, ele se transfigurou em versão hiperbólica e vociferante da tradição estatutária latina, onde a lei é não um reflexo acerca de fatos observados, mas uma doutrina deontológica sobre o comportamento desejável.

Nem mesmo Luiz Inácio Lula da Silva, que antes de ser eleito Presidente da República era um crítico contumaz da adoção de Medidas Provisórias, consideradas por ele e seus colegas de partido quando estavam na oposição como “ferramentas a serviço do autoritarismo”, destoou de seus antecessores: foram editadas sob o manejo da sua caneta, em pouco mais de dois anos de gestão presidencial, 143 MPs[9].

As Medidas Provisórias revestem-se, na prática institucional, de papel paralelo à legislação oriunda do Congresso Nacional, com o agravante de que, sendo usadas pelo Poder Executivo rotineiramente, acabam tornando o dia a dia dos brasileiros que se vêem obrigados a planejar suas vidas sob os ditames do princípio constitucional da legalidade, pelo qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”[10]na antevisão do inferno.

Feita esta breve digressão jurídica, voltemos às estatísticas sobre as Medidas Provisórias. É impositivo pensá-la à luz do mecanismo de funcionamento de um Estado de Direito verdadeiramente consolidado. Hayek explicou-o argüindo que“para que o indivíduo possa empregar com eficácia seus conhecimentos na elaboração de planos, deve estar em condições de prever as ações do Estado que podem afetar esses planos. Mas para que tais ações sejam previsíveis, devem ser determinadas por normas independentemente de circunstancias concretas que não podem ser previstas nem levadas em conta de antemão – e os efeitos específicos dessas ações serão imprevisíveis”[11].  

         Já se pode perceber a tremenda dificuldade que é imposta a qualquer cidadão que no Brasil pretenda planejar as suas atividades com um razoável grau de previsibilidade. O clima de insegurança gerado pelo Estado não se explica apenas pelo mar insano de normas editadas sorrateiramente: é grande também a quantidade de leis dedicadas a favorecer com exclusividade determinados grupos específicos. Um Estado que ao invés de garantir a segurança do sistema jurídico violenta-a, e que age com freqüência não indiscriminadamente, mas favorecendo algumas facções em detrimento da totalidade da população pagante de impostos jamais seria classificado por Hayek como um Estado de Direito. O Estado brasileiro é, isto sim, um monstrengo amorfo cuja cabeça, considerada a representação da sua vertente autoritária, se ergue ambiguamente sobre as pernas tortuosas da democracia e da Constituição.

Um estudo detalhado de como a legislação brasileira constitui-se na maior transgressora dos princípios de um Estado de Direito extravasa as molduras limítrofes do presente trabalho. O mais desolador é que essa transgressão tem origem nítida na própria Constituição Federal, que, além de ser excessivamente prolixa, contém verdadeiras pérolas de insignificância jurídica[12]. Lidos em conjunto, é fácil perceber que dos nove títulos que a subdividem, poucos são os que não tecem uma ode a atuação positiva do Estado, convidando-o a participar da esfera dos mais diversos ramos do desenvolvimento humano, individual e coletivo. “O Estado deve prover” isso e mais aquilo é expressão que se conta exaustivamente em nossa Constituição. Para ir além nessa sanha por tutelar a tudo e a todos, só faltou que se propusesse a ensinar-nos a ler e a escrever.

Roberto Campos, citando em seu colossal livro de memórias[13] o constitucionalista Diogo de Figueiredo, assinalou que este último apontara que nossa Constituição é, ao mesmo tempo, um hino à preguiça e uma coleção de anedotas. Como dispositivos que são estimulantes da ociosidade e baluartes de privilégios imerecidos, podem-se ressaltar: redução a seis horas dos turnos ininterruptos de trabalho; adicional de um terço no pagamento de férias; licença paternidade;aviso proporcional ao tempo de serviço; proibição de distinção entre trabalhadores braçais e intelectuais; exagerada estabilidade no emprego e grevismo incentivado. Como curiosidade, Campos sublinhou alguns dados tanto excêntricos quanto preocupantes: a palavra produtividade só aparece uma vez no texto constitucional; a palavra eficiência figura duas vezes; fala-se, por outro lado, em garantias 44 vezes e em direitos 76 vezes, enquanto que a palavra deveres é mencionada apenas 4 vezes. A tendência antiliberal do texto é induvidosa: a palavra fiscalização figura nele 15 vezes, e a palavra controle 22 vezes.

Eis aí outra conseqüência execranda da verborragia normativa que assola nosso ordenamento jurídico. O legislador não se contenta em redigir normas com cláusulas gerais, deixando à incumbência dos cidadãos as escolhas que tomarão visando maximizar o seu bem estar. O Estado sempre avocou para si a função de grandioso pai da nação brasileira, orientando os filhos em cada um de seus passos, desde o nascimento até a velhice. Papai Estado acha que os filhinhos não têm competência para administrar sua poupança pessoal e se precaver de eventuais adversidades econômicas, e criou, para isso, o FGTS. Para cuidar dos pobres e idosos, tidos pelos bondosos políticos brasileiros como uma mistura de menores e imbecis[14], criou-se um sistema de previdência compulsória, que na prática representa a mais injusta engrenagem de transferência de renda por meio da qual uns poucos são privilegiados com gordas aposentadorias, às custas de uma massa de contribuintes que nem de longe experimenta um retorno proporcional do dinheiro revertido em favor do INSS.

Acostumados a tudo esperar do Estado e inseridos numa esfera social que condena moralmente o lucro e a livre iniciativa, os brasileiros têm entregado de bandeja sua liberdade às autoridades estatais. O mesmo processo foi detectado por Hayek em sua época, acerca do qual opinou que, em face dele, não se pode “censurar os jovens quando preferem o emprego seguro e assalariado ao risco do livre empreendimento, pois desde a mais tenra idade ouviram falar daquele como uma ocupação superior, mais altruísta e mais desinteressada. A geração de hoje cresceu num mundo em que, na escola e na imprensa, o espírito da livre iniciativa é apresentado como indigno e o lucro como imoral, onde se considera uma exploração dar emprego a cem pessoas, ao passo que chefiar o mesmo número de funcionários públicos é uma ocupação honrosa”[15]. Ele dificilmente poderia imaginar que o diagnóstico dirigido em especial à Europa (mais precisamente Inglaterra e Alemanha) da década de 40 do século passado pudesse descrever, mais de meio século depois, uma sociedade tão distante e distinta daquela, onde o fenômeno do sacrifício da liberdade em busca de segurança se desenrola com ainda mais intensidade.

Os números não admitem controvérsias. Recente pesquisa feita com jovens brasileiros recém egressos das universidades[16] indicou que apenas 2% deles pretendem ser empresários, preferindo preterir-se dos riscos dessa atividade (e por via de conseqüência abrir mão da possibilidade de auferir lucros e gerar empregos) para se tornar empregados ou funcionários públicos, em carreiras nas quais poderão desfrutar de estabilidade e privilégios legalmente instituídos. E agora, com o PT no comando do governo federal, o sonho da “brava gente brasileira” de encostar-se numa repartição pública pelo resto de suas vidas poderá ser integralmente realizado, tendo em vista o aumento vertiginoso do quadro de servidores que está em curso, constando dos planos da administração central a contratação de aproximadamente 28.000 funcionários só no serviço público federal neste ano de 2005[17]. Na esfera municipal, o número de servidores aumentou 18,52%,  com a criação, nos últimos três anos, de 628.633 novos cargos. Nem se fale das contratações comissionadas de livre provimento: na Câmara dos Deputados e no Senado, 72% ingressam sem a realização de concurso público[18].

Neste cenário caótico, a intervenção do Estado na economia é apenas uma das muitas dimensões do controle estatal compreendido globalmente. Trata-se, porém, de uma das suas mais perversas e dissimuladas facetas, justamente porque é de praxe se desvincular a liberdade de mercado da liberdade entendida em seu sentido mais amplo – como se fosse possível existir esta sem aquela. Hayek, na condição de intelectual que apreendeu de maneira ímpar o momento histórico no qual estava inserido, marcado pela ascensão de regimes ditatoriais por quase toda a Europa, retirou daí lições preciosas e nos legou valiosos ensinamentos, argumentando que esse é um erro grave capaz de conduzir uma sociedade docilmente ao totalitarismo.  

3) A intervenção do Estado na economia, sua conseqüência lógica e necessária e a máquina panfletária de desinformação coletiva que a justifica

  Roberto Campos foi um dos intelectuais brasileiros que seguramente melhor compreendeu o Brasil e que, por outro lado, mais foi incompreendido por ele. Quando a elite pensante atribuía a culpa por nossas mazelas a um suposto neoliberalismo que imaginavam orientar as políticas econômicas aqui implementadas, Campos, do alto de sua sabedoria adquirida nas muitas décadas em que fez parte da máquina pública, seja como Diplomata de carreira, como Ministro de Estado ou como Parlamentar, dizia incansavelmente que não era este o caso: “o Brasil não sofre do excesso de capitalismo, mas da falta dele”[19].      

Suas palavras jamais foram levadas a sério. De nada adiantou provar com sólidos argumentos jurídicos, econômicos e filosóficos que a sociedade brasileira encontra-se antes num estágio de capitalismo de estado, no qual é incogitável falar-se em liberdade de mercado. Lênin, um socialista de nomeada, elaborou interessante conceito a respeito do que vem ser o capitalismo de estado e que, embora formulado em referência à Rússia pós-revolucionária, explica formidavelmente o Brasil da era da redemocratização.

Em folheto panfletário datado do ano 1918[20], o líder bolchevique se mostrava preocupado com os rumos que a antiga URSS deveria tomar após a revolução. Notando que sobre a superfície do regime econômico russo de sua época flutuavam fragmentos que vagavam desordenadamente do capitalismo ao socialismo, enumerou-os numa ordem hierárquica cujo ápice era a sociedade socialista. No patamar mais inferior estavam, para ele, as componentes da economia camponesa patriarcal; em segundo vinha a pequena produção mercantil; em terceiro estava o capitalismo privado; em quarto, o capitalismo de estado e, por último, o socialismo. “A Rússia é tão grande e tão complexa que nela se entrelaçam todos esses tipos diferentes de economia social”, disse o revolucionário[21]. Qualquer semelhança com o também grande e complexo Brasil e a mixórdia que impera em sua economia não é mera coincidência. 

 Mas a sua preocupação tinha um enfoque específico. Lênin, que vislumbrava o caminho para o socialismo em etapas e via o capitalismo de estado como um estágio anterior e necessário ao socialismo, estava convicto de que o maior empecilho para alcançá-lo residia na resistência oposta pela “pequena burguesia” e pelos defensores do capitalismo privado que, juntos, lutavam em comum acordo tanto contra o capitalismo de estado como contra o socialismo. Tem-se aqui o ponto chave pra compreender o que Lênin entendia por capitalismo de estado. Suas palavras são tão esclarecedoras que seria um pecado capital deixar de citá-las ipsis literis: “A pequena burguesia resiste a qualquer intervenção do Estado, contabilidade e controle, seja capitalista de estado ou socialista de estado. Este é um fato da realidade, absolutamente indiscutível, em cuja incompreensão está toda uma série de erros econômicos. O especulador, o saqueador do comércio, o sabotador do monopólio; este é o nosso principal inimigo ‘interno’, o inimigo das medidas econômicas do poder soviético”.[22]

 Está claro que o capitalismo de estado nada mais é, segundo o interessante conceito leninista, do que um estágio econômico no qual a iniciativa privada, bastante intimidada, convive com a ação engajada do Estado, que nela intervém e a ela controla. As palavras contabilidade e controle, ambas citadas por Lênin em sua definição, implicam, respectivamente, planejamento e intervenção. Daí para o socialismo, etapa em que os meios de produção – concentrados nas mãos do Estado com a ajuda do controle e da intensa intervenção na economia consignados na fase do capitalismo de estado – serão “socializados”, basta um escorregão.

 Dando um salto de quase cem anos na história, continuemos no trato com a economia brasileira dos nossos dias, usando da análise jurídica já esboçada para adentrar o pantanoso terreno da economia. A Constituição Federal, mais uma vez, figurará nos comentários arrolados, por tratar-se da principal fonte normativa a viabilizar o aparato de intervenção e o planejamento da economia pelo Estado.

O constitucionalista Diogo de Figueiredo, citado mais acima, comparou o texto magno da Carta de 1967/69 – que segundo ele estava longe de ser considerada uma constituição suma (ou principiológica) – com a “Constituição cidadã” de 1988, constatando que na anterior havia quatorze estatutos de intervenção estatal, e que esta última contém quarenta e um[23]. Exatamente: são ao todo quarenta e um os dispositivos constitucionais da Carta de 1988 que dispõem sobre a intervenção do Estado na ordem econômica, subdivididos pelo jurista em intervenções regulatórias (28 dispositivos), intervenção concorrencial (1 dispositivo), intervenções sancionatórias (5 dispositivos) e intervenções monopolistas (7 dispositivos).

Após quinze anos de existência e de ter sido emendada 45 vezes, fato que em si dá mais uma amostra da gritante instabilidade de nosso sistema jurídico, não houve alteração substancial nessa enxovalhada de normas constitucionais intervencionistas. Nem mesmo as privatizações ocorridas na gestão do Presidente Fernando Henrique Cardoso e a estabilidade econômica que nela se promoveu serviram para suavizar o controle estatal sobre a economia[24]. De fato, a tentativa foi válida e teve, a despeito das críticas que se faz à maneira como se deram as privatizações, bons resultados, como no setor de telecomunicações e no caso da Vale do Rio Doce, que hoje é muito mais competitiva que outrora. Ainda assim, a estrutura intervencionista que tem lugar no seio da Constituição permaneceu, a bem da verdade, intocada.   

Ainda no que se refere às privatizações, cabe dizer que o processo de saneamento estatal iniciado por Fernando Collor e continuado mais timidamente por Fernando Henrique Cardoso foi não apenas estancado com a chegada de Lula à presidência, que, dando vazão à sua fúria estatizante, impôs-lhe um drástico refluxo, recolocando-nos nos caminhos da planificação econômica. O Brasil contava com 145 empresas estatais no início da gestão de FHC, e com 106 quando do seu término. Dados do Ministério do Planejamento apontam que, até o mês de abril de 2005, elas são em 133, confirmando a tendência socialistóide da governança petista[25].

Parece óbvio que, sob um aparato constitucional nestes moldes, não há meios institucionais de se evitar a proliferação de leis controladoras da economia. Some-se a estrutura constitucional interventora com as suas incontáveis extensões capilares infraconstitucionais e se terá a exata dimensão da arquitetura do nosso Estado dirigista. Lênin classificaria esse modelo sem hesitações – e com euforia – como um capitalismo de estado, em que a iniciativa privada e a burguesia, seus inimigos “internos”, opõem-se à intervenção estatal na ordem econômica. Longe de estarem praticando políticas econômicas liberais ou neoliberais, a burocracia verde e amarela encontra-se em fraternal reunião na ante-sala do socialismo. A socialização dos meios de produção, tida como conditio sine qua non à implantação de uma sociedade socialista é, nesse contexto, apenas a cereja a ser colocada sobre o bolo pronto e acabado do Leviatã brasileiro.

A colocação do Brasil no ranking da Heritage Foundation, que anualmente publica um criterioso Índice de Liberdade Econômica (ILE) em que figuram todos os paises do globo, ratifica tudo o que se disse até aqui. A economia brasileira, situada em 90º lugar, foi considerada quase não livre, num estudo de ampla abordagem que levou em conta aspectos como políticas comerciais, carga fiscal, intervenção do governo na economia, política monetária, investimento externo, preços e salários, direito de propriedade, regulamentação da economia e mercado informal[26].

A conclusão não poderia ser outra. Em vista da carga fiscal brasileira que já está na casa dos 40% do PIB (cuja ascensão vertiginosa se iniciou no governo de FHC, saltando nos seus oito anos de mandato de aproximadamente 28% para 36% do PIB[27]), uma das maiores do mundo; da estrutura arcaica e inflexível de intervenção estatal nas relações entre empregadores e empregados, regida pela empoeirada Consolidação das Leis do Trabalho, que além de engessar os contratos entre esses dois pólos da relação trabalhista, estipula um sem número de encargos a serem arcados pelos empregadores, sendo estas, além da elevadíssima carga fiscal, causas patentes do alto índice de desemprego no Brasil, responsáveis ainda por engrossar o setor informal da nossa economia; do relativismo que impregna o princípio da propriedade privada, a qual deve se sujeitar, pelo mandamento constitucional, a atender a uma suspeita “função social”[28], que tem servido para justificar as invasões de terra do MST por todo o território nacional; de uma Justiça sustentada sobre um sistema recursal que incita as partes, especialmente as que não estão do lado da razão, à procrastinarem a discussão por anos intermináveis, não há argumentos terrenos que contrariem a alegação de que o Estado brasileiro é ele próprio, tal qual está dado, o motor do subdesenvolvimento nacional.

Estruturada dessa forma, uma economia não poderia mesmo ser atrativa ao investidor estrangeiro. Torna-se atrativa forçosa e artificialmente mediante a adoção de altas taxas de juros pelo Banco Central, que, se servem a um tempo como remédio para controlar a inflação, impõem de outra banda freios ao crescimento do país. A redução delas, entretanto, é perfeitamente possível e depende apenas de que se perpetre a meticulosa limpeza dos entulhos que se amontoam nas estantes do nosso Estado Cartorial.

Tais são os motivos que explicam a vergonhosa classificação do Brasil no ranking da Heritage Foundation, situado atrás até de alguns paises africanos, como Qatar, Marrocos e Namíbia[29].   

Curiosamente, os países que gozam de melhor classificação no ILE são também os mais desenvolvidos do mundo. Há uma estreita coincidência entre estes e os melhores classificados no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)[30], bem como entre os piores classificados nos dois indicadores, não havendo melhor forma de demonstrar que a liberdade econômica traz prosperidade generalizada.

Mas porque, então, mesmo frente a fatos e argumentos estrondosamente incontroversos que comprovam que as políticas adotadas pelos governantes brasileiros não possuem sequer o germe do liberalismo e representam, inversamente, um atentado cabal contra a liberdade econômica, insiste-se em dizer que liberalismo e liberdade econômica são as causas da concentração de renda, da pobreza e do atraso nacional?

Isso só é possível com o auxilio de uma organizada máquina de propaganda a serviço da desinformação coletiva, que no Brasil conta com a participação de professores, jornalistas, intelectuais e políticos. Eles bem sabem, como sabia Hayek, que “embora seja necessário escolher as idéias e impô-las ao povo, elas devem converter-se nas idéias do povo, num credo aceito por todos que leve os indivíduos, tanto quanto possível, a agir espontaneamente do modo desejado pelo planejador”[31]

            Em “O Imbecil Coletivo”, Olavo de Carvalho apresentou um estudo minucioso desse fenômeno de dimensões portentosas, identificando o grau de penetração das idéias intervencionistas e socialistas nos segmentos da sociedade brasileira. Retirados do poder em maio de 1964, os porta-vozes do marxismo no Brasil foram buscar acomodação nos mais diversos nichos sociais, sendo a mídia e as universidades as suas trincheiras por excelência, onde se aparelharam e se multiplicaram em favor da disseminação gramsciana da ideologia marxista. Sedimentada no decurso de  décadas, a impregnação desse ideário fez nascer uma redoma quase impenetrável aos argumentos que vêm de fora dela, preparando com sucesso o retorno da militância esquerdista ao poder, cuja apoteose deu-se com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para Presidente da República em 2002.

         Cientes da necessidade de, para manter-se no poder, tornar as idéias e os projetos do partido nas idéias e projetos do povo, o PT levou consigo à Brasília a equipe de especialistas em marketing que teve papel crucial na vitória da “esperança sobre o medo”, a qual, agora estampando chapa-branca, integra o aparelho da propaganda oficial.

Estribada no castelo das técnicas propagandísticas de Duda Mendonça & CIA, a inoperância do assistencialismo petista está devidamente resguardada de eventuais retaliações públicas, de vez que, por inepta que seja a atuação estatal na promoção da “justiça social” redistributivista, a maquiagem que lhe sobrepõe os profissionais do marketing é capaz de transformar o pesadelo da ineficiência burocrática no mais singelo conto de fadas. É assim que programas como o “Fome Zero”, “Bolsa Família” e “Primeiro Emprego” passam do status real de fiasco ao de veículos eficazes de “inclusão social”[32].

O “Fome Zero” baseia-se comprovadamente em superestimativa do número de esfomeados no Brasil. Ademais, os recursos do programa não chegam em seus destinatários, perdendo-se de repartição em repartição num longo trajeto burocrático que é um verdadeiro ralo por onde escoam as verbas públicas.

O “Bolsa Escola” integrou uma coletânea de programas do governo anterior que, exprimidos na moldura da insígnia petista, se transformaram no “Bolsa Família”, mostrado à população pela propaganda oficial como o milagre do “maior e mais ambicioso programa de transferência de renda da história do Brasil”[33]. A realidade, no entanto, depõe contra a propaganda governamental. São inúmeras as denúncias de corrupção em torno do “Bolsa Família”, a maior parte envolvendo pessoas que não preenchem os requisitos para receber o benefício[34].

O programa “Primeiro Emprego” é mais um capítulo na encenação fracassada do espetáculo assistencialista. Criado para gerar, mediante a concessão de subsídios a empresários, aproximadamente 250.000 empregos para jovens entre 16 e 24 anos, o programa logrou criar, até meados de março deste ano, apenas 3.168 empregos. O governo, é claro, nega o fracasso[35].

A importância estratégica de se justificar as políticas de justiça social redistributivista (usadas como pretexto para aumentar a arrecadação mediante tributação) através de propagandas enganosas que acobertem a sua ineficiência é tão evidente que o PT, após recente divulgação de pesquisa do IBGE apontando que no Brasil a obesidade é um problema maior que a desnutrição (confirmando a desnecessidade dos programas assistencialistas tão caros aos governantes brasileiros), resolveu submeter, num típico arroubo totalitário, a publicação das pesquisas dessa entidade à prévia análise do governo central[36]. Se elas, por condizentes e comprometidas que sejam com a realidade, não interessarem às intenções petistas, serão evidentemente descartadas in limine.   

A ascensão às escadarias do Palácio do Planalto de demagogos socialistas eleitos democrática e institucionalmente para representar a população é perfeitamente  adequada a um país formado por indivíduos entorpecidos de marxismo em níveis que beiram as raias da overdose, onde a prática de se estabelecer uma relação lógica entre causa e conseqüência é fenômeno não mais que episódico. Num cenário com estes contornos, natural que se atribua em coro afinado a responsabilidade pela absurda disparidade entre ricos e pobres não ao seu maior causador, isto é, o Estado, mas ao mercado, e que os governantes, atendendo aos anseios dos eleitores, adotem políticas intervencionistas, restringindo a liberdade dos cidadãos e os conduzindo pelas mãos à condição de servos do Leviatã.      

Todos esses fatores somados tiveram como reflexo automático a esmagadora vitória da engenharia coletivista no Brasil, que se encerra na arena política pela constatação de que ambos os partidos mais poderosos da atualidade empunham propostas socialistas de todas as cores e matizes, não havendo entre eles diferença ideológica alguma. O que coloca PT e PSDB em lados opostos é, como reconheceu publicamente o próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, apenas e tão somente a briga pelo poder[37].

E quanto aos defensores da liberdade individual e da livre iniciativa? Estes, infelizmente, continuam a padecer da absoluta falta de representação política, contando, para não sucumbir e desaparecer em definitivo, com não mais que uns poucos adeptos ali e acolá que sempre são vozes isoladas em seus meios. O sucesso do liberalismo depende do triunfo da idéia de liberdade corretamente compreendida entre os intelectuais, acontecimento que está, acima de tudo por conta das raízes escandalosamente anti-liberais da cultura nacional, um tanto distante de se concretizar.         

4) Conclusão

Haverá quem alegue que o diagnóstico esboçado neste breve ensaio é por demais pessimista. Dirão estes que o Brasil, país em que se realizam eleições periódicas, longe se encontra dos modelos totalitários que tiveram lugar na Europa e na URSS do século passado, e que ainda resistem em países como Cuba e Coréia do Norte.

 É evidente que uma tal crença só se sustenta ignorando-se a real extensão das conseqüências do planejamento da economia e da deterioração do Estado de Direito.  Aos incautos, deixa-se o imorredouro alerta de Hayek, proferido em alusão ao contexto jurídico e econômico da Alemanha que elegeu democraticamente Adolf Hitler: “A lei pode tornar legal aquilo que para todos os efeitos permanece uma ação arbitrária e, para possibilitar a gestão central das atividades econômicas, é-lhe necessário fazer isso. Se a lei declara que uma autoridade ou comissão podem agir da maneira que lhes convém, todas as ações destas serão legais – mas não estarão sujeitas ao Estado de Direito. Conferindo-se ao governo poderes ilimitados, pode-se legalizar a mais arbitrária das normas; e desse modo a democracia pode estabelecer o mais completo despotismo. (…) É bem verdade que Hitler tenha adquirido poderes ilimitados de forma rigorosamente constitucional e que todas as suas ações sejam, portanto, legais no sentido jurídico. Mas quem concluiria, por essa razão, que o Estado de Direito ainda prevalece na Alemanha?”[38]  

Abril de 2005

Thiago Magalhães

*originalmente publicado Laissez-Faire


[1] LENIN, V. I., Estado, Ditadura do Proletariado e Poder Soviético (organizado e traduzido por Antonio Bertelli), Ed. Oficina de Livros, Belo Horizonte, 1988, p. 304 

[2] Hayek, em Direito, Legislação e Liberdade – Vol. II: A miragem da justiça social, além de ter anotado a redundância desse termo, afirmando que não pode haver justiça outra que não seja social, disse ao seu respeito: “Evidentemente, a expressão traduziu desde o início aspirações que constituíam a essência do socialismo. Embora o socialismo clássico se tenha em geral caracterizado pela exigência da socialização dos meios de produção, isso era, para ele, sobretudo um meio considerado essencial para a realização de uma distribuição ‘justa’ da riqueza; e, visto que os socialistas descobriram mais tarde que essa redistribuição poderia ser efetivada, em grande parte e com menor resistência, por meio da tributação (e de serviços governamentais por ela financiados), relegando muitas vezes na prática suas exigências anteriores, a realização da justiça social tornou-se a sua principal promessa”. (HAYEK, F.A., Direito, Legislação e Liberdade – Vol. II:  A miragem da justiça social, Ed. Visão, São Paulo, 1985, p. 83)

[3] HAYEK, F.A., O Caminho da Servidão, Ed. Instituto Liberal, 5ª Edição, Rio de Janeiro, 1990, p. 86

[4] HAYEK, F.A., Op. cit., p. 97

[5] HAYEK, F.A., Op. cit., p. 98

[6] HAYEK, F.A., Op. cit., p. 87

[7] HAYEK, F.A., Op. cit., p. 84

[8] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Quadro/Governo_novo.htm

[9] Dados retirados do site oficial do Planalto – www.planalto.gov.br

[10] Art. 5º, II, da Constituição da República Federativa do Brasil

[11] HAYEK, F.A., Op. cit., p. 88 

[12] O legislador originário concedeu status constitucional a assuntos que não mereceriam sequer a atenção de uma portaria ministerial. O art. 242, § 2º da CF, que dispõe que “o Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal” é um ótimo exemplo disto.

[13] CAMPOS, Roberto, Lanterna na Popa, Ed. Topbooks, Rio de Janeiro, 1988, p. 1215

[14] CAMPOS, Roberto, Op. cit., p. 1207

[15] HAYEK, F.A., Op. cit., p. 131

[16] http://www.olavodecarvalho.org/textos/debate_usp_3.htm

[17] http://www.centraldeconcursos.com.br/noticias.asp?id_noticia=188

[18] Instituto Liberal – RJ, Comentário do dia 27.04.2005

[19] CAMPOS, Roberto, Op. cit., p. 1257

[20] LENIN, V. I., Op. cit., pp. 298-299

[21] LENIN, V. I., Op. cit., p. 299

[22] LENIN, V. I., Op. cit., p. 299

[23] FIGUEIREDO, Diogo de, Ordem econômica e desenvolvimento na Constituição de 1988, Ed. APEC, Rio de Janeiro, 1989, pp. 89-90

[24] E nem poderia ser diferente. FHC já afirmou categoricamente em diversas entrevistas à imprensa que não é um neoliberal, e acredita, bom social-democrata que é, que a economia deve ser fortemente regulamentada. Qualquer dúvida a este respeito desaparece como que por encanto lendo-se a declaração programática do PSDB (http://www.psdb.org.br/opartido/programa.asp), uma ode à intervenção estatal e um manifesto de repúdio ao liberalismo: “como social-democratas, não concordamos com as propostas neoliberais que propugnam um corte radical nas funções do Estado, sua redução a um Estado mínimo que não interfira na economia e não tenha qualquer responsabilidade, a não ser demagógica, para com os mais pobres (…)”. 

[25] http://www.planejamento.gov.br/controle_estatais/conteudo/perfil/evolucao_estatais.htm

[26] http://www.heritage.org/research/features/index/country.cfm?id=Brazil

[27] http://www.abn.com.br/artbergamini1.htm

[28] Art. 5º, XXIII da Constituição Federal. O novo Código Civil trouxe ao âmbito contratual esse mesmo princípio. Veja-se o seu art. 421, que dispõe que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

[29] http://www.heritage.org/research/features/index/countries.cfm

[30] http://hdr.undp.org/

[31] HAYEK, F. A., Op. cit., p. 148

[32] Em discurso proferido na cerimônia de abertura do encontro internacional “As Dimensões Éticas do Desenvolvimento”, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse sobre estes três programas: “O ‘Fome Zero’ é, acima de tudo, um chamamento moral à sociedade brasileira para extirpar uma chaga duplamente imperdoável em um país com tanta abundância. O ‘Primeiro Emprego’ irá engajar milhares de empresas na tarefa de dar a jovens brasileiros uma oportunidade de tornarem-se cidadãos e cidadãs produtivos. A ‘Bolsa-Escola’ é um investimento da sociedade brasileira no seu próprio futuro”. (http://www.radiobras.gov.br/integras/03/integra_030703_02.htm)

[33] Site do Fome Zero (www.fomezero.org.br).

[34] http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=174211

[35] http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2005/metassociais/fj3103200516.shtml

[36] http://www.schwartzman.org.br/simon/IBGE%20atuonomo.htm

[37] http://www.diegocasagrande.com.br/main.php?flavor=manchetes&id=6583

[38] HAYEK, F. A., Op. cit., p. 93

BIBLIOGRAFIA:

– CAMPOS, Roberto, Lanterna na Popa, Ed. Topbooks, Rio de Janeiro, 1988

– FIGUEIREDO, Diogo de, Ordem econômica e desenvolvimento na Constituição de 1988, Ed. APEC, Rio de Janeiro, 1989

– HAYEK, F.A., O Caminho da Servidão, Ed. Instituto Liberal, 5ª Edição, Rio de Janeiro, 1990 

– HAYEK, F.A., Direito, Legislação e Liberdade – Vol. II:  A miragem da justiça social, Ed. Visão, São Paulo, 1985 

– LENIN, V. I., Estado, Ditadura do Proletariado e Poder Soviético (organizado e traduzido por Antonio Bertelli), Ed. Oficina de Livros, Belo Horizonte, 1988

SITES CONSULTADOS:

. Agência Brasileira de Noticias – www.abn.com.br

Central de Concursos – www.centraldeconcursos.com.br

Diego Casagrande – www.diegocasagrande.com.br

Fome Zero – www.fomezero.gov.br

Folha Online – www.folhaonline.com.br

Heritage Foundation – www.heritage.org

Instituto Liberal – www.institutoliberal.org.br

Ministério do Planejamento – http://www.planejamento.gov.br

Olavo de Carvalho – www.olavodecarvalho.org

. ONU – www.hdr.undp.org

Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) – www.psdb.org.br

Presidência da República – www.planalto.gov.br

Radiobrás – www.radiobras.gov.br

Schwartzman.org – www.schwartzman.org.br

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O papel da teoria da Escolha Pública

[Texto retirado da Introdução ao livro O que é a Escolha Pública? Para uma análise económica da políticapor José Manuel Moreira e André Azevedo Alves (Cascais: Principia, 2004)]

A questão das designadas «falhas de mercado» constitui um dos temas que mais atenção tem merecido por parte de economistas, professores, políticos e cidadãos em geral. A abordagem dessa matéria começa geralmente pela identificação de alegadas «falhas de mercado», motivadas pelas mais diversas «imperfeições» que, por sua vez, requerem a intervenção do Estado no sentido de as corrigir, contribuindo assim, supostamente, para a promoção do bem-estar social e da eficiência económica. Uma vez identificada uma «falha» no funcionamento do mercado livre, assume-se, de forma geralmente implícita, que o Governo, naturalmente dotado de boas intenções, tem ao seu dispor os meios, os conhecimentos e as capacidades necessárias para, intervindo na economia, estabelecer uma situação socialmente mais vantajosa. Está inclusivamente muito difundida na opinião pública a ideia de que, perante a percepção de um qualquer problema, se justifica (e por isso exige) a intervenção estatal.

No entanto, ao longo das últimas décadas, esta concepção do Estado como «corrector» das falhas de mercado tem vindo a ser crescentemente questionada. A análise dos pressupostos justificativos da intervenção governamental na economia e o estudo da forma como essa intervenção tende a desenvolver-se na prática têm feito crescer o número daqueles que olham com cepticismo as «miraculosas» soluções estatais. Daí a busca de alternativas que permitam – simultaneamente – evitar intervenções de consequências nefastas e promover o eficiente desempenho das funções fundamentais do Estado.

Estes estudos, que no fundo visam conseguir uma análise realista e teoricamente consistente do processo político, da acção colectiva e das práticas governativas, deram origem, no âmbito da Economia e da Ciência Política, a uma nova abordagem: a «teoria da escolha pública» (public choice, na terminologia anglo-saxónica), que consiste, grosso modo, na aplicação da análise económica à política.

A decisão, em 1986, por parte da Real Academia Sueca das Ciências, de atribuir o Prémio Nobel da Economiaa James McGill Buchanan, pelo desenvolvimento das bases contratuais e constitucionais para a tomada de decisões económicas e políticas, veio atrair ainda mais atenção para a inovadora abordagem da escolha pública. Buchanan que, com Gordon Tullock, produziu The Calculus of Consent, muito provavelmente, a obra seminal neste importante desenvolvimento da Economia e da Ciência Política. Lançando as bases de uma nova abordagem dos estudos constitucionais, a qual seria amplamente desenvolvida nas décadas seguintes, Buchanan e Tullock acabaram por dar origem à teoria da escolha pública, com a sua provocatória denúncia da crescente politização da economia e a formulação de uma dura crítica à visão romântica do Estado benevolente e eficaz.

No presente livro, propomo-nos apresentar de forma sintética, mas sem perda de rigor, as características essenciais desta importante e inovadora abordagem que é a teoria da escolha pública. O objectivo desta obra é, assim, servir de introdução – a estudantes e ao público em geral – à teoria da escolha pública, sendo que procuramos simultaneamente fornecer referências bibliográficas, naturalmente não exaustivas, que permitam aos interessados aprofundar os seus conhecimentos nas várias matérias apresentadas ao longo do livro.

No segundo capítulo faremos uma sucinta apresentação das origens da teoria da escolha pública, começando por analisar o contexto em que surgiu este novo programa de pesquisa e daí partindo, retrospectivamente, em busca dos seus principais antecedentes teóricos, com destaque para as contribuições do grande economista sueco Knut Wicksell e para os problemas levantados por Arrow e Black relativamente ao processo de decisão democrático. No terceiro capítulo, abordaremos de forma mais desenvolvida os aspectos fundamentais da teoria da escolha pública, partindo precisamente dos contributos fundamentais que foram introduzidos por Buchanan e Tullock na sua obra The Calculus of Consent. Analisaremos a nova abordagem constitucional introduzida pela teoria da escolha pública, assim como a enriquecedora perspectiva lançada pela mesma sobre os processos de decisão colectiva. Ainda no terceiro capítulo, apresentaremos os ensinamentos da teoria da escolha pública sobre as condições necessárias ao bom funcionamento de um sistema baseado no governo democrático da maioria e analisaremos de forma sintética alguns dos mais importantes subprogramas de investigação que mais se têm destacado nesta abordagem ao longo dos últimos anos. No quarto capítulo, abordaremos algumas questões éticas relacionadas com a teoria da escolha pública. No quinto capítulo, procuraremos dar uma ideia das múltiplas aplicações da teoria da escolha pública às mais variadas áreas políticas, económicas e sociais através da análise de alguns problemas específicos. No sexto capítulo, procederemos à análise e apreciação de algumas das principais objecções formuladas à teoria da escolha pública. Apresentaremos também um balanço do impacto que a teoria da escolha pública tem vindo a ter na comunidade científica e na opinião pública. Terminaremos com uma reflexão sobre os contributos que esta inovadora abordagem fornece para combater a crise dos sistemas democráticos através do desenvolvimento de boas práticas de governo e administração e da promoção de um saudável equilíbrio entre sociedade civil e Estado.

José Manuel Moreira e André Azevedo Alves

Índice de O que é a Escolha Pública? Para uma análise económica da política:

Prefácio
1. Introdução

1.1. O papel da teoria da escolha pública
1.2. A escolha pública como programa de pesquisa
2. Origens da Teoria da Escolha Pública
2.1. Os precursores da public choice
2.2. Finanças públicas e economia política
2.3. Escolha pública e preferências individuais
2.4. Análise económica da democracia
2.5. Problemas das votações por maioria
3. A Teoria da Escolha Pública
3.1. Política e economia
3.2. O individualismo metodológico no contexto das escolhas colectivas
3.3. Externalidades, bens públicos e Estado
3.4. Imperfeições e falhas do Governo
3.5. A lógica da acção colectiva e a dimensão dos grupos
3.6. A teoria dos clubes
3.7. Maiorias simples e o paradoxo do voto
3.8. Teoria económica das Constituições
3.9. Logrolling e grupos de pressão
3.10. Rent-seeking
4. Ética, Democracia e Eficiência
4.1. A ética das escolhas individuais e a sociedade civil
4.2. Ética, mercado e política
4.3. A ética do trabalho e da poupança
4.4. Ética e organização social
5. Aplicações da Teoria da Escolha Pública
5.1. Escolha pública e interdisciplinaridade
5.2. Despesa pública e arbitrariedade fiscal
5.3. Segurança social
5.4. Descentralização e poder local
5.5. Teoria das burocracias e reforma da Administração Pública
5.6. Educação e liberdade de escolha
6. Considerações Finais
6.1. Objecções à teoria da escolha pública .
6.2. O impacto da teoria da escolha pública
6.3. A crise da democracia e a teoria da escolha pública
7. Apêndice
Elogio do doutorando J. M. Buchanan (Texto lido na cerimónia
de Doutoramento Honoris Causa de James McGill Buchanan pela
Faculdade de Economia da Universidade do Porto, em 1995);
Entrevista com James Buchanan, Nobel da Economia 1986

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Inflação em Portugal desde 1970: moral da história

INFLAÇÃO EM PORTUGAL DESDE 1970

1970 – 4.5 %1980 – 16.6 %1990 – 13.4 %2000 – 2.9 %
1971 – 7.5 %1981 – 20.0%1991 – 11.4 %2001 – 4.4 %
1972 – 9.0 %1982 – 22.4 %1992 – 8.9 %2002 – 3.6 %
1973 – 10.4 %1983 – 25.5 %1993 – 6.5 % 
1974 – 27.8 %1984 – 29.3 %1994 – 5.2 % 
1975 – 20.7 %1985 – 19.3 %1995 – 4.1 % 
1976 – 18.3 %1986 – 11.7 %1996 – 3.1 % 
1977 – 27.3 %1987 – 9.4 %1997 – 2.2 % 
1978 – 22.1 %1988 – 9.7 %1998 – 2.8 % 
1979 – 24.2 %1989 – 12.6 %1999 – 2.3 % 

Fonte: www.bportugal.pt (2002); www.gesbanha.pt/informacoes/cidadao/tx inflacao.htm (1970-2001

Este quadro mostra perfeitamente por que razão o governo de Marcelo Caetano se fragilizou ao ponto de cair “de podre” em 1974: a inflação instalou-se e mais que duplicou entre 1970 e 1973, ainda antes do “choque petrolífero”, numa dinâmica que tem toda a aparência de motivação estrictamente interna (a política “social” então encetada certamente que teve tudo a ver com isto, sacrificando o anterior rigor orçamental a “investimentos públicos” também convenientes do ponto de vista político para o então presidente do Conselho de Ministros).

A este propósito – e por contraste –, deve dizer-se que a duração do governo de Salazar deveria ser mais relacionada pelos historiadores com a sua política monetária e financeira: o rigor orçamental e o “escudo forte”, que controlaram a inflação e as derrapagens das contas públicas, tornaram o seu governo politicamente sólido no médio e no longo prazo porque permitiram um crescimento real do rendimento dos particulares num cenário em que a moeda perdia muito pouco do seu poder aquisitivo, bastando um ligeiro crescimento anual do P.I.B. para esse efeito de enriquecimento deslizante descomprimir as tensões (e a sua sempre possível “politização”) decorrentes das expectativas das pessoas.

Ora, as pressões no sentido de abandonar o enquadramento “macro-económico” criado por Salazar sempre se tinham manifestado desde 1945 (as políticas “industrialistas” à Daniel Barbosa era isso que pediam) e os conselhos que povoam o célebre livro do Prof. Valentim Xavier Pintado (Structure and Growth of the Portuguese Economy, Genebra: E.F.T.A., 1964; reed. Lisboa: I.C.S., 2002) – e que formaram a geração “reformista” que chegou ao poder na burocracia estatal em meados da década de 60 – iam no mesmo sentido. Caetano chegou assim à chefia do governo num clima já favorável da “opinião técnica” vigente a maiores gastos com programas keynesianos de distribuição da riqueza e de demand management; daí que, em demanda de uma legitimação da sua liderança entre a nova geração de quadros e profissionais, Caetano tenha optado por aquilo que ele próprio denominou “Estado social”, com o seu modelo universal de educação, saúde e pensões de reforma.

Por isso é um erro atribuir ao crescimento dos gastos militares com a guerra no ultramar o peso decisivo nesta pressão despesista que levou o governo de Caetano a recorrer à depreciação do escudo para financiar as despesas públicas: segundo os dados de Eugénia Mata e Nuno Valério (História Económica de Portugal: Uma Perspectiva Global, Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 271), as despesas com a defesa representaram 19.1% das despesas totais em 1970 e 14.2% em 1973.

Em 1974 estava já plenamente instalada a perda crescente de poder aquisitivo do escudo que deverá ter criado uma sensação difusa mas fundamentada na sociedade de degradação do poder de compra, não admirando que o golpe de Estado militar tenha colhido apoio entre o funcionalismo público militar e civil a partir de uma motivação claramente salarial (ver as reivindicações iniciais do M.F.A., que só depois se “politiza” para poder levar a cabo uma mudança política de fundo que alterasse a situação “profissional” dos oficiais das forças armadas; entre estes, mesmo que inconscientemente, a perda de poder de compra deverá ter introduzido crescentes dúvidas em relação à validade dos sacrifícios pessoais e familiares envolvidos no esforço de guerra e cada vez menos compensados financeiramente).

A influência do marxismo nos círculos oposicionistas desde os anos 40 explica a sua adopção – primeiro funcional, depois explícita – pelos actores militares do derrube da II República na Primavera de 1974. Essa ideologia, que, no poder, sempre se tornou num “socialismo de Estado”, legitimou um aprofundamento de duas das principais tendências do marcelismo (alargamento do alcance e das despesas com o Welfare State) com repercussões claras na política financeira e monetária: monetarização da despesa pública e depreciação da moeda.

Sem surpresas, a inflação quase triplicou em 1974, devendo-se a desaceleração de 1975 e 1976 provavelmente a ajudas externas e ao fim dos encargos com a guerra e o ultramar (segundo Mata e Valério, Op. Cit., p. 265, mesmo que a valores correntes, as receitas continuaram a crescer durante o período revolucionário, pelo que poderiam transferir-se para os gastos “sociais” e suportar, como suportaram, um continuado aumento geral da despesa: esta era de 47.6 milhões de contos em 1973 e de 122.6 milhões de contos em 1976).

A instabilidade política que dominou os primeiros anos da III República não incentivou os governos da época nem a um maior rigor orçamental nem a uma estabilização do escudo, pelo que, de 1976 a 1979, houve uma média de inflação de 22.9% ao ano; só o governo de maioria de Sá Carneiro conseguiu que, em 1980, uma política monetária mais restrictiva baixasse a inflação para 16.6%, o que se veio a revelar um fenómeno passageiro, já que, entre 1981 e 1984, no seguimento da crise e instabilidade – primeiro latente, depois patente – instalada no seguimento da morte do primeiro-ministro, a inflação quase duplica novamente.

A ajuda financeira do F.M.I., possibilitada pela breve coligação do “bloco central”, permitiu que, a partir de 1985, se conseguisse voltar a baixar a inflação (cai 10%), tendência que se consolida nos anos seguintes com a estabilidade política permitida pela liderança de Cavaco Silva – só esta consegue um mandato popular para criar uma situação macro-económica estabilizada que neutraliza a influência dos elementos perturbadores da ordem constitucional (comunismo e eanismo) e encontra margem de manobra para, de modo continuado e sustentado, fazer a inflação regressar ao nível de 1970.

É só então que o actual regime verdadeiramente se consolida e fica imune a uma instabilidade crónica do poder executivo que o marcara desde o início; neste contexto, tanto os fundos comunitários como a aceitação da disciplina monetária e financeira dos tratados da União Europeia aliviaram as pressões internas de monetarização das despesas e funcionaram como um travão dos efeitos negativos de descontrolos orçamentais conjunturais como o que ocorreu durante os governos de António Guterres (1995-2002), mostrando a evolução da taxa de inflação em 2002 que o maior rigor orçamental posto em prática pelo novo governo liderado por Durão Barroso já está a surtir um efeito positivo.

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Contributos para a Definição do Estado Social nas Sociedades do Século XXI:< O ESTADO GARANTIA

Sumário

1.      A liberdade é uma característica intrínseca ao homem e à sua dignidade.

2.      Compete ao Estado garantir os direitos humanos e as liberdades que eles protegem. Liberdades que são liberdades de escolha. Por isso ser contra a liberdade de escolha é ser contra a dignidade humana, é ser contra a verdadeira democracia.

3.      O Estado Social, quando elimina a concorrência na sociedade, asfixia a liberdade de escolha e a responsabilidade do homem, e torna-se totalitário.

4.      Ao respeitar a liberdade de escolha, o verdadeiro Estado Social cumpre o princípio da subsidiariedade.

5.      O verdadeiro Estado Social é um Estado Garantia, na medida em que lhe compete garantir um mínimo de liberdade de escolha a todos os cidadãos. Quando um direito estiver em risco por falta de meios, o Estado Garantia tem a obrigação de garantir os recursos económicos que possibilitem o exercício da liberdade protegida por esse direito.

6.      Uma vez aceite este princípio, ficam em aberto a definição do grau de garantia que se deseja e um espectro vastíssimo de soluções possíveis. Por isso o Estado Garantia não é “propriedade” de ninguém nem de nenhum partido político, mas sim de todos aqueles que percebem que os caminhos para o bem comum passam pela garantia de um mínimo de liberdade de escolha a TODOS os homens.

Direitos Fundamentais e Liberdades Individuais

liberdade, enquanto característica que distingue o homem de todos os outros seres, é indispensável para a plena afirmação da dignidade humana e, com base nela, para a construção e consolidação de uma sociedade onde os direitos fundamentais emergentes da natureza humana sejam garantidos a todos os cidadãos sem excepção.

Tudo pode ser tirado a um homem, mas só quando ele despreza ou lhe é tirada a liberdade é que ele também perde a sua própria dignidade. Por isso, a liberdade só pode ser negada a uma pessoa quando põe em causa a própria liberdade ou a liberdade de outros.

juízo de valor que está na base da elevação da liberdade à condição sine qua non da dignidade humana é “cada pessoa ser considerada o melhor juiz, mesmo que frequentemente falível, do seu próprio bem”.2

É este juízo de valor que está subjacente em todas as declarações sobre os direitos humanos de que Portugal é signatário e à defesa das liberdades, direitos e garantias na Constituição da República Portuguesa. É este juízo de valor que justifica ser a liberdade de escolha pedra angular da dignidade humana.

É este juízo de valor que distingue os partidos e movimentos políticos democráticos dos partidos e movimentos políticos inimigos da liberdade. É a aplicação prática deste juízo de valor pelos poderes públicos que diferencia uma sociedade de cidadãos de uma sociedade de escravos.

É a partir da afirmação da autonomia e da responsabilidade dos cidadãos que se promove a realização pessoal de cada um, o sentido comunitário e a participação política e cívica.

Negar a capacidade de “escolha” às pessoas é sujeitá‑las à condição de servos de quem escolhe, quer seja a aristocracia (ou as suas metamorfoses mais modernas, a tecnocracia e “metade da população mais um”), quer seja um qualquer partido ou grupo vanguardista, considerando‑se iluminado para saber o que é melhor para cada pessoa e, portanto, para a sociedade.

Negar ao homem a capacidade e, portanto, o direito, e, portanto, o dever de ser responsável pelas suas decisões e actos, reconhecendo ao mesmo tempo a mesma capacidade, o mesmo direito e o mesmo dever a todo e qualquer outro homem é negar a dignidade humana. 3

Mas, a liberdade de escolha tem limites físicos e, numa sociedade, acarreta decisões colectivas que envolvem compromissos entre as liberdades de diferentes indivíduos.4

Por isso, na prática, este objectivo traduz-se na obrigação dos poderes públicos garantirem a TODOS os cidadãos pelo menos aquele mínimo de liberdade de escolha e de capacidade de se responsabilizarem por ela, sem a qual não há dignidade humana. 5

Em particular, sempre que esteja em causa o exercício de uma liberdade de escolha protegida por um direito fundamental e tal exigir a utilização de recursos económicos, então deve garantir-se a liberdade de escolha através da garantia de que os necessários recursos económicos para esse fim são disponibilizados a quem não os tenha.

Em suma, é indispensável pensar uma nova cultura política, coerente e global, capaz de assegurar, a TODOS os cidadãos, aquele mínimo de liberdade de escolha que concretiza a dignidade humana e que, para a afirmar, cada um quer poder agir com maior autonomia, convicção e responsabilidade.

O Estado Garantia6

O Estado, como estrutura destinada a possibilitar o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos – e, portanto, as liberdades de escolha que lhes estão subjacentes – através da promoção (inclui a regulação, quando necessário) do exercício dessas liberdades por TODOS, tem tido diversas formas de se organizar ao longo dos tempos.7

O Estado Social da segunda metade do século XX representou um avanço assinalável sobre o Estado Liberal do século XIX, mas a experiência da sua aplicação prática e as necessidades das sociedades modernas e dos seus cidadãos, têm-lhe vindo a colocar novos desafios e a exigir o seu aperfeiçoamento.

O Estado Social nasceu da consciência do valor da solidariedade como expressão do valor da igualdade de todos os cidadãos no exercício das liberdades fundamentais.

A superioridade do Estado Social adveio, em última análise, de ser seu objectivo garantir a todos os cidadãos aquele mínimo de liberdade de escolha que concretiza a dignidade humana e, portanto, a igualdade de oportunidades no exercício dos direitos sociais. Não há igualdade de oportunidades quando não há oportunidades de escolha.

Ao chamar a si o exercício preferencial ou mesmo o monopólio na execução de um número crescente de tarefas, o Estado Social tornou-se um sorvedor de recursos, ineficiente, burocrático e centralizador, que paralelamente mata a inovação e o progresso. A liberdade de escolha é por si eliminada. 

Ao reservar para a si o papel fundamental, atribuindo um carácter meramente supletivo às iniciativas dos cidadãos e dos corpos sociais intermédios, o Estado Social apoderou-se da liberdade de escolha dos cidadãos, pervertendo a sua própria razão de ser.

Ao mesmo tempo e com consequências ainda mais graves, desresponsabilizou o cidadão, enfraqueceu a consolidação de uma cultura de rigor e de exigência na sociedade, e perverteu a sã concorrência em que se alicerça a liberdade de escolha. É que não há concorrência sem liberdade, nem liberdade sem concorrência.

O resultado é um Estado Social desvirtuado, frequentemente cativo de interesses corporativos e individuais, habituados a apropriarem-se dos impostos que todos pagamos, com relevo para os que se deixam seduzir pelo proteccionismo e pelos favores do Estado e para alguns grupos de cidadãos (mais ou menos organizados) sentados à mesa do orçamento do Estado.

A acumulação destes efeitos perversos explica porque é que este Estado Social burocrático se torna tantas vezes anti-social, ao enfraquecer a capacidade dos cidadãos gerarem maior riqueza, prejudicando em particular o esforço dos que mais necessitam dessa capacidade, i.e. dos mais fracos e desfavorecidos.

O século XXI, enquanto herdeiro do Estado Social, não o pode nem o deve negar. Mas precisamos de reequacionar os valores humanistas que lhe estiveram na origem, em ordem a um Estado Social que seja realmente garante dos direitos fundamentais de todos os cidadãos.

Precisamos de um Estado que cumpra o princípio da subsidiariedade, verdadeiro preceito sine qua non de todas as políticas que visem o bem comum, com expressão clara em muitos diplomas da União Europeia e na nossa Constituição. Precisamos evoluir do Estado Social burocrático para um Estado Social subsidiário, na feliz expressão de Mário Pinto.8

Este “novo” Estado Social tem vindo a ser designado por Estado Garantia, na medida em que a sua razão de ser é garantir as liberdades concretas que estão subjacentes a todos os direitos fundamentais do ser humano.

É um Estado a quem se exige que garanta a todos os cidadãos a liberdade de escolha entre serviços que satisfaçam direitos fundamentais, independentemente da titularidade estatal ou não estatal de quem o presta.

É, portanto, um Estado supletivo relativamente a todas as iniciativas dos cidadãos que tenham em vista responder às necessidades concretas das pessoas, de uma forma mais próxima, mais humana e mais responsável, e por isso, também mais eficiente e mais eficaz.

É um Estado que promove e cria meios capazes de fomentar a auto-afirmação dos cidadãos e dos corpos sociais intermédios, ao mesmo tempo que os responsabiliza pelos seus actos, sabendo encontrar o equilíbrio certo entre liberdade individual e interesse colectivo.

Quando o exercício de um direito estiver em risco por falta de meios, o Estado Garantia tem a obrigação de garantir os recursos económicos que possibilitem o exercício desse direito. Assim, perante aquele direito, cria uma igualdade de oportunidades a todos os cidadãos.

É na definição do grau de igualdade de oportunidades que se deseja garantir a todos e, portanto, na definição do mínimo de recursos económicos que se considera deve ser transferido entre cidadãos, através dos impostos, que deverão ser encontradas as diversas sensibilidades sociais e, por conseguinte, as diferentes propostas político-partidárias. O Estado Garantia é, neste sentido, património de todos os partidos políticos para quem a liberdade de escolha seja a pedra angular da dignidade do homem. Também nesse sentido, ser-se contra o Estado Garantia é ser-se inimigo da liberdade.

Em conclusão, o Estado Garantia reequaciona o Estado Social através de uma maior ponderação dos direitos fundamentais e das liberdades por eles protegidas. Só libertando o Estado de responsabilidades que nunca lhe cabem se restabelecerá a sua autoridade e se garantirá a eficácia da sua acção.

1              Publicado em NOVA CIDADANIA, n.º 24 de Abril/Junho de 2005

2                 Ou, no caso de uma criança, a família ou quem a substitua legitimamente.

                Note-se que não se questiona a existência do bem objectivo, conhecido por Deus, que cada pessoa retira de uma determinada escolha. Nem se afirma a “concepção individualista da verdade e da liberdade” e “a prioridade absoluta da razão natural como fundamento da verdade, da moralidade e da própria crença em Deus”. Não se nega, portanto, a “revelação sobrenatural que é fonte de verdades superiores ao homem”. Nem se rejeita a “objectividade da verdade que a revelação nos comunica”, sem a qual cairíamos na “relatividade da verdade a que cada razão individual pode chegar”, confundindo a tolerância em relação às pessoas com a tolerância em relação à objectividade da verdade. [Cardeal Patriarca de Lisboa, “A Páscoa da Eucaristia”, Nota Pastoral sobre a Quaresma de 2005]

                Também não se questiona o dever de cada pessoa tentar encontrar esse bem objectivo no concreto das suas escolhas. A questão está a ser posta a nível exclusivamente operacional, isto é saber a quem compete avaliar o bem para cada pessoa adulta: ela própria ou outrém em vez dela, neste último caso transformando esta em servo daquela?

              “Le concept de droits de l’homme … répond à un besoin exprimé dans toutes les cultures et toutes les langues depuis que les sociétés humaines existent; ce besoin “contre nature”, puisqu’il s’oppose à la loi naturelle du règne du plus fort, exprime en fait la quintessence de la nature humaine. L’homme, en effet, “est doué de la capacité, et donc du droit, et donc du devoir, de faire de lui-même un être responsable de ses décisions et de ses actes, reconnaissant du même coup la même capacité, le même droit, le même devoir à tout autre être humain.” [Jeanne Hersch, “Le Droit d’être un homme”, 1968]

4              Este é o problema bem conhecido das escolhas colectivas, em que é sabido que toda e qualquer decisão a nível colectivo só é democrática se houver total consenso sobre ela ou, pelo menos, sobre a regra de escolha colectiva utilizada (seja ela a maioria simples, mais ou menos qualificada ou qualquer outra).

5                 “É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à protecção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa”.Gaudium et Spes, 26 (Promoção do bem-comum), 1965

6              Diversos pontos foram retirados ou adaptados de textos do “Compromisso Portugal – Uma Iniciativa de Causas”, apresentados em 26 de Abril de 2004, em cuja redacção o autor participou, e de algumas intervenções proferidas ao longo da IX Legislatura pela deputada Isilda Pegado. A responsabilidade das alterações é exclusivamente do autor.

7              “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness. – That to secure these rights, Governments are instituted among Men, deriving their just powers from the consent of the governed, – That whenever any Form of Government becomes destructive of these ends, it is the Right of the People to alter or to abolish it, and to institute new Government, laying its foundation on such principles and organizing its powers in such form, as to them shall seem most likely to effect their Safety and Happiness” – The Declaration of Independence of the Thirteen Colonies, In CONGRESS, July 4, 1776 (O sublinhado é nosso)

8              “É penoso dizê-lo, mas sem mais uma revisão constitucional, que institua um Estado social subsidiário, em vez de um Estado social-burocrático de direcção central, gratuito e universal, não será fácil a nenhum governo resolver o problema do País”. Em “O Peso do Estado”, Mário Pinto, PÚBLICO de 3 de Janeiro de 2005

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Og Leme e o Liberalismo Moderno

Corre nos círculos internacionais do Liberalismo o moto otimista que os “liberais vivem mais tempo” (liberals live longer). A frase é atribuída a um dos mais veneráveis e mais ilustres, Friedrich Hayek, que faleceu aos 93 anos. Outros grandes economistas e escritores liberais foram agraciados com longas vidas para a defesa de idéias que, infelizmente, nunca foram “politicamente corretas” num século dedicado ao crescimento da burocracia, ao culto do Estado hegeliano e ao genocídio bélico que resulta dessas tendências. Um dos mais eminentes economistas vivos, Milton Friedman, o guru de Chicago, tem 92 anos, continua produzindo e, ocasionalmente, freqüenta reuniões de seus discípulos ou as que são anualmente promovidas pela Sociedade do Mont Pèlerin (MPS) – uma ONG informal que possui hoje mais de quinhentos membros de 40 nacionalidades.

Og Francisco Leme só tinha 81 quando faleceu, mês passado. Lamentado por seus amigos e admiradores, ele ainda muito poderia contribuir para a difusão de uma doutrina mal conhecida, mal vista e mal interpretada em nossa terra de tupiniquins estatizantes, botocudos iletrados e vira-bostas sedentos de cargos públicos. Talvez os três pontos culminantes na vida desse professor de atitude modesta, fina ironia, inteligência brilhante, voz pausada e excepcional capacidade de aturar a imbecilidade alheia, foram a oportunidade que teve de concluir seu mestrado na Universidade de Chicago; de trabalhar alguns anos em Santiago, na CEPAL; e de participar das atividades do Instituto Liberal do Rio de Janeiro, desde quando fundado há vinte anos.

Em Chicago, Og estudou com Milton Friedman de quem absorveu as idéias mais avançadas nessa disciplina. Ali também conheceu outro grande economista, Frank Knight, de ambos se tornando amigo e absorvendo não só os ensinamentos, mas o próprio espírito vibrante desses pensadores liberais. Paulista e formado na Faculdade de Direito da USP, Og obteve nos Estados Unidos o benefício de se descontaminar do vírus da AIDS ideológica que infesta os corredores daquela famosa instituição.

Em seguida, no Chile onde permaneceu alguns anos, sua experiência foi curiosa e estimulante pela polêmica que manteve com o argentino Raul Prébich, o maior representante do keynesianismo e do intervencionismo estatal no organismo onusiano, quando pôde avaliar os malefícios que a Comissão Econômica para a América Latina estava gerando neste continente malsinado. Só mais tarde, de 1975 a 89, o Chile absorveria a prática do liberalismo dos chamados Chicago boys que lhe granjearam um excepcional sucesso econômico sob o benemérito governo do general Pinochet. O país é o único da América do Sul que já penetrou no Primeiro Mundo e mantém altos índices de crescimento econômico, graças à elogiável decisão de dois presidentes socialistas de não mexerem na estrutura implantada.

Com a crise argentina e a estagnação brasileira, seu percapita é hoje o mais alto da América Latina. Og costumava imputar a Raúl Prébich a culpa pelos desastres que interromperam o “milagre brasileiro” a partir do governo de Geisel. As receitas da CEPAL se enraizaram, aqui como alhures, adicionando-se a uma espécie de nostalgia romântica e vocação para o sub-desenvolvimento que o Estado patrimonialista invariavelmente provoca, detendo qualquer crescimento material ou progresso social. Og conseguia, com imensa dificuldade, controlar sua indignação com as políticas calamitosas que inspiraram quase todos nossos governantes nesse período. Insistia, entretanto, que o Estado de Direito e o governo das leis (rule of law) são a base de uma sociedade liberal.

Voltando ao Brasil em 64, trabalhou com Roberto Campos até o final do governo Castello Branco, após o que lecionou e foi coordenador do CENDEC. Em 1983 e a convite de Donald Stewart, colaborou na fundação do Instituto Liberal do Rio de Janeiro onde permaneceu como consultor cultural até seu falecimento. Durante esse período foi o representante do Liberty Fund, organizando e presidindo os chamados “seminários socráticos” que esse think-tank de Indianápolis, EEUU, patrocina. Foi num deles que melhor conheci e passei a admirar esse admirável e dedicado scholar de tão excepcional pertinácia, coragem e visão no sentido de difundir em nossa terra os ensinamentos do Liberalismo. Além de inumeráveis artigos, ensaios e estudos que escreveu para o IL do Rio, Og é também o autor de um pequeno ensaio, divertido, conciso e clarividente, com um título que diz tudo Dos Cupins e dos Homens. Pois de fato, que mais devemos temer do que uma sociedade coletivista, dedicada não a produzir bens crescentes em número e qualidade na prática da liberdade, mas a estagnar e corroer a nação na tirania e no marasmo burocráticos?

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Herculano, a “propriedade literária” e a doutrina do Código Civil de Seabra: reflexões sobre a questão da “propriedade intelectual”

Apesar de ter escrito em 1843 um artigo em que condenava, no plano moral, a cópia integral de textos da imprensa portuguesa em periódicos brasileiros, sem que os nomes dos autores e as fontes fossem citados, Alexandre Herculano (1810-1877) revelou-se um opositor da chamada “propriedade literária” e, sobretudo, da sua consagração jurídica em dois textos de 1851 endereçados a Almeida Garrett e depois num Apêndice de 1872. Escritor que se sustentou sempre através da sua actividade literária, tinha inegável erudição e competência em matérias de Direito (foi membro da comissão que elaborou o Código Civil “de Seabra”, promulgado em 1867, e foi autor de vários estudos jurídicos, de que se podem destacar os Estudos sobre o Casamento Civil – ele foi, aliás, o artífice do regime jurídico “duplo” do matrimónio, civil e religioso, consagrado no Código, e que institucionalizava o divórcio para os casamentos civis). Mas, como veremos, apesar de ter partido neste assunto da sua habitual coerência intelectual, a condição de “homem de letras” parece tê-lo levado a transigir demasiado com soluções que ele próprio reconhecia serem incorrectas e contra-producentes.

Por “propriedade literária” designava-se o pretenso direito de propriedade dos escritores sobre aquilo que escreviam e de um modo que isso implicava que a reprodução desses escritos por outrém só se pudesse fazer ou por cedência graciosa do autor ou por contrato entre o mesmo e aquele outro que o reproduzia; isto implicava, na verdade (e era isso que estava em causa), que os autores se podiam arrogar o direito de “vender” o texto para que este pudesse ser por alguém reproduzido, independentemente do número de vezes que essa reprodução ocorresse. Não vou aqui ocupar-me dos pormenores que muito entreteram Herculano nos seus textos de 1851 e que decorriam das normas definidas no convénio então celebrado entre o Governo de S.M.F. e a República Francesa – entre outras coisas, estavam em causa a responsabilização criminal de livreiros que passavam a ter de certificar-se que os livros que compravam e vendiam não eram

“ilegais” ou a obrigatoriedade do público de fazer selar pelas autoridades competentes livros previamente comprados e reproduzidos por editores “contrafactores” (tudo coisas que Herculano considerava violações da verdadeira propriedade individual, além de irracionalidades económicas que colocavam entraves a negócios legítimos e que, na verdade, favoreciam o progresso da alfabetização e da cultura letrada); pelo contrário, vou centrar-me apenas nos argumentos de princípio avançados por Herculano e que estão na esfera da filosofia ou da teoria do Direito.

A minha convicção é que a doutrina delineada por Herculano para combater a “propriedade literária” é perfeitamente válida para, mutatis mutandis, se combater o pretenso princípio da “propriedade intelectual” hoje consagrado na generalidade dos ordenamentos jurídicos vigentes; e isto porque, não só toda a questão da “propriedade literária” se pode considerar incluída na questão mais vasta da “propriedade intelectual”, como os argumentos apresentados por Herculano para combater a primeira apontam exactamente para um combate, mais geral, à segunda. Esses argumentos são essencialmente dois:

          a) a propriedade é uma categoria que diz respeito a coisas materiais, tangíveis, não se podendo considerar nela incluídas coisas que não tenham esses atributos da materialidade e da tangibilidade [e para ele estão nesse caso realidades imateriais como os actos, as ideias, as palavras ou discursos proferidos ou escritos, as técnicas, etc., tudo coisas que podem ser imitadascopiadas ou transformadas por outrém sem que os meus reais direitos de propriedade sejam lesados: «Cada vocábulo e cada frase é o molde, a forma de uma ideia simples ou complexa. A concepção disso, a que metaforicamente se chama uma obra, um escrito, um livro, nada mais é, pois, do que a justaposição, em tal ou tal ordem, das ideias revestidas das suas formas particulares que estão catalogadas no dicionário da língua para uso comum.» (1872)];

          b) o carácter condicional e temporário que se confere à “propriedade literária” é uma prova da natureza imperfeita e insustentável desse pretenso direito, que, para mais, fere as características (absoluta e perpétua) do verdadeiro direito de propriedade, contribuindo para o relativizar [aqui, Herculano respondia àqueles que o atacavam, considerando que ele, negando a “propriedade literária”, estava a atacar em geral o direito de propriedade e a dar argumentos aos socialistas; Herculano, como é evidente, achava que a consagração de um direito de propriedade imperfeito*, porque não absoluto nem perpétuo, é que abria caminho ao socialismo…].

Assim, para Herculano, o direito de propriedade não podia abranger as criações do espírito humano enquanto ideias, discursos, gestos, formas (ou fórmulas…) que pudessem ser imitados; apenas poderia abranger objectos criados, entidades físicas, materiais, tangíveis. Miguel Ângelo, ao criar o seu David (se os materiais fossem seus e não tivesse nenhum contrato p.e. com alguém que lhe encomendara a obra), teria o pleno direito de possuir e defender a posse dessa escultura, de lhe dar o uso que bem entendesse, de a legar a quem entendesse ou até de a destruir; mas não poderia evitar (nem exigir da Justiça que evitasse) que alguém que a tivesse visto copiasse a ideia de representar o David bíblico sob a forma de um grego atlético da Antiguidade clássica ou mesmo, se tivesse capacidade para isso, que reproduzisse exactamente as formas da sua escultura.

Não estando envolvido o “roubo” de um objecto ou qualquer tipo de dano a esse objecto, a Justiça não tem que interferir porque nenhum direito de propriedade foi violado. Na verdade, a Lei não pode considerar a forma do David propriedade de Miguel Ângelo; apenas a estátua concreta é propriedade de Miguel Ângelo. A razão de ser deste facto radica numa constatação simples do senso comum: se posso ser proprietário de uma forma, não há nenhum princípio racional que me impeça de poder reclamar propriedade sobre outras coisas similares, como um passo de dança ou uma melodia que criei mais ou menos inadvertidamente. Não há nenhum princípio racional que permita distinguir juridicamente um texto, uma melodia, uma forma escultórica, uma fórmula matemática ou um composto químico, por um lado, de, por outro lado, uma receita culinária, uma nova “técnica” de arroto, uma forma cómica de andar ou uma mistura original de pássaros de diferentes espécies numa gaiola; a única forma de confundir estas combinações, estas formas, estas ideias, com o direito de propriedade é vir alguém e estabelecer – arbitrariamente – que umas são “evidentemente” objecto de propriedade e outras não. Se um verdadeiro direito de propriedade (portanto, absoluto e perpétuo) pudesse ser estabelecido sobre estas combinações, formas e ideias, a vida sob a Lei e a administração da Justiça (que, como diziam os Antigos, consiste em dar a cada um o que lhe pertence) tornar-se-iam impossíveis; e melhor seria desistir-se da instituição da propriedade privada… Não admira assim que esses alegados direitos de propriedade sobre coisas não materiais nem tangíveis nunca tenham sido reconhecidos nas mais antigas tradições jurídicas; e menos nos admirará o facto de que a sua defesa moderna só se fez, nos espíritos mais avisados, com recurso a um argumento utilitarista…

Ora, acontece precisamente que Herculano acabou por fazer a concessão de considerar que os “direitos” dos autores das obras literárias e artísticas podiam ser equiparados pela lei, e em virtude de alegada “utilidade pública”, aos “direitos” dos inventores, sendo-lhes conferido o privilégio de só eles poderem reproduzir as suas obras ou inventos; este privilégio do autor/inventor poderia depois, presume-se, dar lugar a contratos de cedência do direito de reprodução. Trata-se de um subterfúgio legal, aliás pouco digno da coerência argumentativa que em geral perpassa os escritos de Herculano (tanto mais que este previa a apreciação da “utilidade pública” por júris reunidos pelo Governo!), mas em que, de qualquer modo, se mantém a sua doutrina basilar:

que a propriedade literária é assimilável à restante propriedade intelectual (“inventos”) e que esta é um tipo imperfeito de propriedade, indefensável no terreno da Lógica e da boa doutrina jurídica e apenas admissível como concessão “pragmática” ou “utilitária”, como lei de excepção (privata lex). O Código Civil de 1867 encontrou uma fórmula similar de compromisso que, concedendo direitos aos autores e inventores, não foi ao ponto de os considerar plenamente incluídos no conceito jurídico de propriedade. Para tanto, incluiu a “propriedade intelectual” no Livro I da Parte II (Da aquisição dos direitos), juntamente com os direitos de ocupação, de posse e prescrição e do trabalho, e não na Parte III (Da propriedade); o que isto significa, nos termos da arquitectura do Código, é que a “propriedade intelectual” é regulamentada na parte relativa ao modo como a propriedade se adquire mas é excluída da parte relativa ao modo como se usufrui da propriedade como direito pleno. A prescrição da “propriedade intelectual” e a “queda” em domínio público era estabelecida em cinquenta anos após o falecimento do autor (artigo 579.º) e em quinze anos após o invento (mesmo que em vida do “inventor”, artigo 613.º, e ficando sujeita à possibilidade de expropriação por “utilidade pública”, artigo 618.º),

o que levara a ironia de Herculano a comentar que tal diferença se devia à «soberania do alfabeto». Ou seja, utilizando a frase que coloquei em epígrafe no início deste texto, poder-se-ia dizer que tanto Herculano como o Código Civil se vergaram a esta “soberania” e à pressão da “república das letras” para consagrarem na Lei a “quadratura do círculo”; parece-me, porém, que a solução do Código, não ligando a concessão dos direitos de “propriedade intelectual” a qualquer aplicação de um nebuloso critério de “utilidade pública”, define um regime mais claro e menos sujeito a arbitrariedades (apesar de ser em si mesmo discutível).

A consagração jurídica da “propriedade intelectual” deve-se, pois, apenas à capacidade de pressão de um grupo e à cedência do legislador. Para justificar essa cedência tem-se recorrido, como no caso de Herculano, com maior ou menor convicção, ao argumento da “utilidade pública” das criações literárias e artísticas e dos inventos e à necessidade de as “proteger” – e sem essa “protecção” não existiriam, supostamente, “incentivos” suficientes para as pessoas se dedicarem a essas criações…! Além de toda a história da humanidade anterior à consagração jurídica da “propriedade intelectual” refutar por si mesma uma tese tão absurda, bastaria uma pequena reflexão sobre a natureza humana para percebermos que tal tese é igualmente falsa: as pessoas são inventoras, criadoras e adaptadoras “compulsivas” e raramente nesses actos de inovação estão a contar os tostões que imaginam poder ganhar.

Por outro lado, não só as pessoas e as empresas são perfeitamente capazes de encontrar meios de concentrar os ganhos (legítimos) na altura do lançamento da novidade (no caso de ela ter aceitação), como a história das artes e da tecnologia demonstra que o sucesso das inovações se dá não tanto na altura da “invenção” mas quando alguém (num golpe de sorte ou de génio) percebe a melhor forma ou oportunidade de a adaptar e lançar – algo que, aliás, o sistema de patentes dificulta cada vez mais, uma vez que se a invenção é monopolizada pelo inventor ou por alguém a quem ele a vendeu, cria-se um obstáculo ilegítimo à sua experimentação e difusão (é o que mostra o que vale o argumento da “utilidade pública”).

É preciso também ser-se particularmente sensível a argumentos chantagistas para se poder acreditar que o fim da “propriedade intelectual” (e das patentes) levaria ao colapso ou sequer à desaceleração da actividade de R&D das empresas de “ponta” – estas precisam dessa actividade como de pão para a boca e teriam sempre de a levar a cabo, adaptando-se simplesmente a um ambiente provavelmente mais competitivo. A procura de inovações existe e basta isso para elas surgirem; o que é provável é que o fim do sistema de patentes conduza a uma disseminação dos focos de “produção de inovações” (e de R&D) – mas isso não espanta porque, ao contrário do que pretende a propaganda “anti-capitalista”, a concentração industrial sempre foi mais um resultado da intervenção e dos favores estatais do que do funcionamento da livre concorrência…! Todos sabemos também que existirão sempre empresas com maior capacidade de realizar economias de escala na promoção e adaptação de inovações, pelo que muitas das actuais “grandes” continuariam bem posicionadas para continuarem a liderar nas suas áreas de mercado respectivas e a ter suficiente margem de manobra para intensificarem a actividade de R&D.

Há que insistir que é a própria procura de inovações, disseminada por todo o mercado, que se encarregará sempre de suscitar a ampliação e a intensificação da propensão criativa de todos os sectores de actividade; a ideia de que é necessário criar ambientes protegidos para suscitar a inovação e a produtividade é negada em Economia não só pela observação empírica como pela teoria. E estou convencido que o mesmo se aplica às artes, já que nem Shakespeare nem Mozart precisaram da “propriedade intelectual” para vingarem e legarem as suas obras à posteridade com a sua assinatura: bastou a aceitação que elas tiveram, o reconhecimento das pessoas e a sede natural de quererem conhecer o nome e a personalidade de quem lhes proporciona tamanho prazer. O resto, como diz o Eclesiastes, «é vaidade»…

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: «Propriedade Literária: Aviso contra Salteadores» (1843), «A Convenção Literária» (1851), «Da Propriedade Literária e da Recente Convenção com a França: ao Visconde de Almeida Garrett» (1851), «Apêndice» (1872), in A. Herculano – Opúsculos – Tomo II: Sociedade, Economia, Direito, S.l.: Bertrand Editora, 1984, pp. 511-573; Codigo Civil Portuguez (approvado por carta de lei de 1 de Julho de 1867), 5.ª ed. oficial, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1907.

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Prostituição e as mães de Bragança

Disse Helena Roseta na revista Visão: “O manifesto das mães de Bragança é um resquício da época em que as forças policiais se aliavam às instituições religiosas e políticas para salvaguardar a moralidade pública”.

Aí está: uma opinião expressa livremente pelas “mães de Bragança” e temos de aturar o moralismo amoral de quem pretende impor os seus próprios padrões (a)morais a terceiros.

Mas o que pode um Liberal dizer sobre um assunto? O acto de prostituição consentido entre adultos é um acto de livre escolha entre ambos. Mas isso quer dizer que o negócio de prostituição possa ser exercido em qualquer

lado? Bem…não.

Quem deve decidir devem ser os proprietários. Quero com isto dizer que um condomínio residencial privado não é obrigado a aceitar que dentro do seu perímetro de propriedade, possa um apartamento ou vivenda ser usado como local para o exercício de prostituição, mesmo que esta actividade seja considerada totalmente legal (não é o caso, mas façamos de conta). É um caso de auto-regulação privada e seguramente nenhum condomínio teria compradores se fossem permitidas tais actividades pelo seu regulamento.

Mas o que dizer de um bairro ou cidade, onde a coisa pública é, pelo menos em tese, detida por todos? Bem, “todos” é para já um exagero. Seguramente, o que se passa nas ruas ou coisa pública de Bragança diz muito mais respeito aos próprios do que a um político na capital.

A única solução é a descentralização da regulação. Quanto mais localizada for a decisão, mais nos aproximamos do paradigma da auto-regulação de um condomínio privado.

Devem assim os municípios decidir se determinado tipo de actividade é compatível ou não com os valores locais, ou em que locais poderá ser tolerada.

Mas talvez ainda não chegue: Qual o órgão político mais próximo dos proprietários locais? As Juntas de Freguesia. Então devem ser estas, em Assembleia com os proprietários locais, a opinar, vetar, permitir ou proibir, que actividades podem ou não ser exercidas localmente.

Não é isso que o Governo Central faz para todas as actividades no domínio económico e social? Pois então, sendo para mim claro que a prostituição não deva ser um crime e que pode ser constituído como um negócio regular, a verdade é que, na minha Junta de Freguesia, vetaria que tal negócio se pudesse desenvolver.

Se me impuserem uma decisão a nível municipal, também votaria contra. Se a decisão for a nível nacional, também votaria contra a prostituição. Apenas votaria a favor da proclamação da descentralização de tal decisão a nível local. E quanto mais local for, melhor. Depois, a nível local, votaria contra.

Portanto, às “mães de Bragança” digo: coragem, continuem com os vossos esforços. Deve ser Bragança a decidir se lá podem existir bares de alterne ou não. As “mães de Lisboa” devem preocupar-se… com Lisboa.

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ÉTICA, DEMOCRACIA E ESTADO

PARA UMA NOVA CULTURA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA”

“Qualquer reforma do Estado e da Administração Pública deve começar pelo combate sem tréguas à crença de que o interesse geral é sinónimo de “interesse público” e este se identifica com o interesse estatal. E, mais grave ainda, que os interesses do Governo coincidem com o bem comum.”

José Manuel Moreira, membro da The Mont Pelerin Society e Professor Associado da Universidade de Aveiro, tem dedicado boa parte da sua obra à análise das relações entre Estado, Governo e Sociedade Civil tendo por base uma concepção objectiva da ética e da justiça.

Este livro, com prefácio de Júlio Pedrosa, reúne um conjunto de cinco textos do autor escritos entre 1999 e 2001 e enquadrados por um Estudo Introdutório onde se realça a necessidade de repensar as funções e o modo de organização do Estado por forma a potenciar a existência de uma sociedade com maior liberdade de escolha e responsabilidade individual bem como a permitir a revitalização das instituições intermédias de carácter voluntário.

De forma a que a necessária reforma da Administração Pública não se limite a meras alterações superficiais, José Manuel Moreira defende a urgência de reequacionar o papel do Estado na sociedade, libertando-a de um intervencionismo de efeitos perversos e assim evitando os malefícios de uma situação em que “ao tentar fazer de mais, o Estado acaba por não fazer bem aquilo que é essencial e prioritário” (p. 17).

Neste sentido, estamos com o autor quanto à necessidade de ultrapassar falsas dicotomias entre Estado e mercado ou entre público e privado, dicotomias essas que derivam da perigosa confusão entre ordem pública e ordem estatal (p. 21). Assume assim particular importância para a constituição de uma sociedade livre o fortalecimento de um sector intermédio, de base voluntária, que promova soluções efectivas para os problemas públicos que o Estado, apesar do crescimento impressionante da despesa pública e da burocracia, é incapaz de resolver. Importa realçar neste âmbito que o referido fortalecimento das instituições intermédias deverá passar “mais pelo reforço do mercado e da liberdade individual do que pelas boas graças e pelos subsídios dos Governos” (p. 26). Se assim não for, corremos o risco de não ter instituições intermédias verdadeiramente autónomas e livres e de minar ainda mais as já muito debilitadas virtudes cívicas.

Se por um lado é necessário superar falsas dicotomias, por outro urge estabelecer a distinção entre serviços públicos e sector estatal. Os serviços governamentais existentes deverão ser sujeitos a uma rigorosa avaliação da necessidade regida pelo princípio da subsidiariedade, bem como por critérios de eficiência e rigor na sua prestação, por forma a determinar se não poderão ser fornecidos de forma mais vantajosa pelo sector privado, ou, quando existe um argumento a favor da provisão pública, pelos poderes e administrações locais (pp. 27-28). Assumindo uma posição crítica face ao actual Estado-Providência, José Manuel Moreira defende um “Estado mais regulador e fiscalizador e menos prestador de serviços.” (p.29). Só dessa forma será possível que “a máquina política e administrativa tenha uma função ordenadora e não perturbadora ou entorpecedora da vitalidade da vida económica, social ou cultural” (p.73).

Neste contexto, facilmente se compreende a preocupação do autor com a proliferação de “direitos sociais” que, pela acção intervencionista que exigem do Estado e pela desresponsabilização dos indivíduos que acarretam, geram consequências nefastas não só a nível da ineficiência económica que provocam mas também, e com efeitos eventualmente ainda mais graves, a nível da distorção do processo político transformado num jogo de interesses de onde “resultam duas consequências. Uma mais visível: a despesa pública, os impostos e a dívida pública. Outra mais letal, a longo prazo: a deslegitimação do Estado.” (p.46). Acresce ainda que o intervencionismo crescente do Estado tem um efeito corrosivo quer sobre o espírito de previdência dos indivíduos, quer sobre as instituições sociais (a começar pela família) que em melhor posição estariam para fazer face aos problemas que supostamente se visa resolver através das sucessivas intervenções.

Um Estado que se ocupe de matérias das quais não se deveria ocupar e que asfixia através da sua intervenção a sociedade e a economia é um Estado que não está em condições de cumprir a sua função essencial de garantir a manutenção da ordem e da Lei. Nesse sentido temos actualmente um Estado pesado, gastador e em larga medida ineficiente que, precisamente por essas razões, é um Estado débil incapaz de garantir a sua finalidade primordial.

A análise realizada pelo autor ao sector do ensino é particularmente interessante e pertinente (pp. 75-91). Pondo em causa as justificações tradicionais para o domínio estatal do ensino, José Manuel Moreira coloca uma série de questões acutilantes de entre as quais destacaríamos a seguinte: “Haverá razões para impedir a maioria das famílias de exercerem o seu direito e dever de escolha, só porque alguns pais podem falhar numa escolha particular (por exemplo, a quantidade de educação)?” (p. 79). Criticando a nomenklatura educativa com a sua ânsia de controlo e as sucessivas “reformas obrigatórias, gratuitas e universais” (p. 82), o autor defende a devolução da liberdade de escolha às famílias e aos indivíduos reservando ao Estado um papel supletivo e de regulação.

Perante a (polémica) questão de qual será a melhor forma de devolver a capacidade de escolha às famílias, José Manuel Moreira refere a proposta dos cheques-educação (vouchers), indicando de seguida que essa opção tem vindo de modo crescente a ser alvo de críticas na medida em que, a ser adoptada, geraria pressão para o aumento da despesa pública e aumentaria a intervenção estatal no ensino. Assim sendo, a abordagem de concessão de créditos de impostos será eventualmente preferível à abordagem dos subsídios (pp. 33-37). Pessoalmente, parece-nos que as políticas de créditos de impostos são sempre preferíveis à concessão de subsídios (como é o caso dos vouchers) uma vez que diminuem a carga fiscal global e introduzem tendencialmente menos distorções nos sectores a que se apliquem.

No que respeita à problemática do desenvolvimento (pp. 105-124), o autor realiza uma análise onde são combinados elementos relativos à importância do factor criativo humano, ao carácter dinâmico, informal, tácito e disperso do conhecimento que está na base do desenvolvimento (na linha de Hayek), e à rejeição do “trade-off entre confiança, ética e eficiência” (p. 106) fazendo uso do conceito de capital social através do qual se compreende a forma como a ética constitui um elemento essencial para a coordenação e crescimento da economia. A sucinta apresentação de uma teoria schumpeteriana do desenvolvimento ético e a sua relação com a noção de “responsabilidade social da empresa” (pp. 109-112) visa complementar o referido enquadramento teórico.

José Manuel Moreira realça a importância para o processo de desenvolvimento de instituições formais e informais adequadas bem como  de um um Estado eficaz que actue no sentido de “criar a ordem da concorrência, mas não entorpecendo o processo económico da concorrência” (p. 123). 

Merece ainda destaque o tratamento dado pelo autor à relação entre democracia e liberdade (pp. 135-140). Em primeiro lugar porque acentua que “o liberalismo requer que todo o poder, e por isso também o da maioria, seja limitado.” (p. 137). Depois, porque apresenta uma importante clarificação ao referir que a igualdade formal pela qual lutam os liberais não é compatível com a noção, impossível de concretizar numa sociedade livre, segundo a qual uma ordem só seria justa se as oportunidades iniciais de todos os indivíduos fossem iguais à partida (pp. 138-139).

Assim sendo, uma sociedade livre requer que a nomocracia prevaleça sobre a teleocracia, ou seja, é necessária a preservação de uma “ordem abstracta e independente dos objectivos que está assegurada pela obediência a regras abstractas de conduta justa” (p. 140). É a partir deste princípio que se desenvolve a crítica ao denominado Estado de Bem-Estar, o qual para além de ter efeitos contraproducentes gera uma economia de interesses que vai minando quer o Estado quer o livre mercado (pp. 141-150).

Em resumo, defendendo a necessidade de voltar a valorizar as virtudes tradicionais, a teoria dos direitos naturais e uma ética universal que rejeite o relativismo e a arbitrariedade, José Manuel Moreira defende para o Estado um papel essencialmente regulador por forma a que este garanta o cumprimento das “regras do jogo” e dessa forma permita o desenvolvimento em liberdade de uma verdadeira Sociedade de Bem-Estar.

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